1. Parti com duas malas para a Grécia. A dos haveres e a outra, com os preconceitos, os clichés, as certezas emprestadas, os vaticínios. A segunda foi-se se esvaziando como um balão enquanto a minha atenção ia sendo minuciosamente convocada pelo espectáculo de um país antigo, culto, educado, interessante, desenvolvido, cosmopolita. E falido, já se sabe. Mas não o mesmo país – surpresa – que durante os últimos anos foi televisivamente vendido ao mundo como uma morada de indolentes arruaceiros, com queda excessiva para a preguiça e a contestação (violenta).

2. Pensei sempre que a roupa preta era para palcos internacionais, para a media, coisas assim, mas não, deve ser um hábito, uma predilecção, talvez uma assinatura. Lá estava ele, às 10h da manhã, de preto dos pés à cabeça, ginasticado e produzido, movendo-se como um felino na coxia do avião, o olhar intenso, à procura de outros olhares. Ocorreram-me algumas imagens da primavera de 2015 deste mesmo cavalheiro, um terraço, uma mulher loura, vinho branco e belas vistas, e ele, tocado pela aura da invencibilidade, desabafando ser “contra o star system”. E não, não havia grande diferença entre essa encenação mediática que ia dando cabo dele e aquilo que agora eu observava, sentada duas filas atrás, no mesmo voo, a caminho de Atenas.

– Mister Varoufakis podemos falar um bocadinho?

Sorriso espantado, o olhar intenso não vacila, a vaidade também não, “só informalmente”.

Apeteceu-me logo desistir – “informalmente” era o quê? –, mas já que vínhamos ambos, ele e eu, de Espanha, e a Espanha, por razões diametralmente opostas, não nos pode ser nada indiferente, agarrei as eleições espanholas com as duas mãos

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Varoufakis vai direito ao Podemos, o resto, mas não há resto para ele. E o PSOE versus Podemos? “As minhas posições são conhecidas, apoio o Podemos, é o que me interessa”. O PSOE? Cilindra os socialistas: “Não, não, não…” Subentendido: só há hoje na Europa uma esquerda digna de destino. A radical. Exit PSOE.

A mulher loura sentada ao seu lado pousou-lhe a mão sobre o braço, como quem acende um sinal de perigo. Virei-me para o Brexit, não tive mais sorte, o meu lacónico interlocutor recusava manter uma conversa indiscreta com uma desconhecida que subitamente se corporizara diante dele num avião. “Well, julgo, … enfim, … parece-me que irá ganhar o sim à União Europeia mas por muito curta distância”. Exit Brexit.

Da Grécia – sem surpresa – nem um som. O braço da mulher loura prosseguia a sua tarefa de aviso de perigo, afastei-me. Varoufakis sorriu, ela não, eu também não.

Fosse como fosse, este breve encontro nos ares com o ex-ministro das Finanças de Tsipras, não me espantou: pessoa e personagem eram o mesmo produto, realidade e representação diluiam-se um no outro.

Fim do primeiro acto grego.

3. Em Atenas, (já não vinha há muito) há mulheres bonitas, esplanadas apinhadas, restaurantes cheios, turistas de mapa na mão e ténis nos pés, comércio concorrido, estudantes, teenagers louras e gente, muita gente (a cidade tem cinco milhões de habitantes), afadigando-se, em passada enérgica, a ir e a vir, entrando e saindo de lojas, empregos, transportes, escolas. Vida e vitalidade, ao primeiro olhar. Segunda surpresa.

Há evidentes sinais exteriores de riqueza que (aparentemente) a ninguém ocorre disfarçar, condomínios murados, mansões de porte e portentosos iates nas diversas marinas que fui vendo. (Esquece-se sempre com demasiada facilidade que a Grécia sempre teve, e tem, “ricos” riquíssimos, sem sombra de comparação, em época alguma, com as modestas e envergonhadas fortunas portuguesas. )

Há hotéis de luxos e hotéis irresistíveis mas, a dois passos, pode haver outros fechados ou já semi-abandonados. O glamour e o desamparo. Fábricas paradas, empresas falidas, apartamentos vazios (“a crise tornou as rendas incomportáveis para muitos”, dizem-me), filas de “sem abrigos” nas principais artérias da cidade a quem as igrejas acodem (explicam-me também), continuando o Estado a “acudir” a muitos. Nalgumas zonas, por exemplo, contam-se por milhares as crianças que recebem um sumo de laranja e um pão diários, à sua chegada à escola, que a crise não se apaga como os incêndios.

E há um governo a braços com greves e manifestações (enquanto eu lá estava eram contra a privatização dos transportes) e um chefe de governo que não hesitou na guinada política que deu ao país, ao governo e ao seu próprio partido. Uma inversão de marcha imposta (Bruxelas dá de comer sob condições), mas Tsipras, mesmo que nunca se pague a dívida e que as contas gregas continuem a não bater certo, deu a guinada. O referendo (vinculativo) de Julho de 2015, as eleições de Setembro e a consequente “clarificação” ocorrida no seio do Syriza agilizaram essa inversão, agora supostamente a caminho da… “social-democracia”. Como aqui ouço (com acinte, com ironia, com pura esperança de melhores dias).

“Tenho alguma inveja de Tsipras”, desabafava surpreendentemente Manuel Valls, o Premier francês, em visita a Atenas por estes dias. A visita durou pouco mais de 24 horas mas as ruas do centro fecharam ao trânsito, os soldados, guardas e polícias exibiam aprumo, as fardas reluziam, o protocolo era digno de se ver. E Valls deprimia-se: Tsipras acabara de conseguir a aprovação de uma reforma sem uma só emenda, num articulado com mais de mil páginas, ao passo que ele…

(Nós sabemos: a França, a ex-grande França, está em saldo. Repara-se menos porque mesmo as catástrofes podem ser relativas: os olhares estão hoje exclusivamente capturados pela Grã-Bretanha e pela Espanha. A deliquescência francesa aguarda vez).

4. Podia continuar em Atenas, rever a Acrópole, lembrar Sophia. Espreitar o templo de Zeus por entre a folhagem, voltar ao imponente edifício do Parlamento. Prefiro porém dizer-lhes que se não esquecemos o olhar vazio dos “sem abrigo” e a tristeza persistente das zonas que foram empobrecendo, o que se retém foi o que porventura tínhamos esquecido: a educação, a cultura, a energia gregas. O país moldado pela maior das civilizações. Uma certa forma de não-desistência. A criatividade: no design grego que se projecta das montras; no mundo da arte que resiste e persiste; na gastronomia e no vinho, no profissionalismo de que se duvidava. E na doçura de tudo. Uma imensa delicadeza, uma disponibilidade bem-educada para com o estrangeiro conhecido ou desconhecido. Não há estranhos, há tempo: a vida pára quando quem vem de fora se dirige a quem vive dentro. Ah, e as boas maneiras, tão impressivas que julgo até que não haverá outras. (E sabe Deus como em Atenas e nas ilhas me desmultipliquei em perguntas, diálogos e curiosidades, onde fosse, com quem quer que fosse.)

5. O factor humano? Sim, claro mas ele não é aqui desligável do factor educação. Os gregos são educados, stritu e lato senso. Vê-se ao primeiro relance e é sobretudo isso que desmente clichés e arrasa caricaturas. É uma atitude, expressa na maneira com apreenderam o que herdaram. No modo como são e estão, como tão cosmopolitamente se relacionam com o mundo. (Também se esquece muitas vezes que houve o regresso à Grécia de classes médias endinheiradas e educadas, vindas de exílios nos orientes e que trouxeram com elas fortuna e mundo, ampliando conhecimentos e gostos. Ou que, embora noutro plano, mas é bom lembrá-lo, a economia grega, embora alinhada com a Europa, teve um comportamento melhor do que a média europeia entre 1993 e 2008: cresceu mais quando a Europa crescia, e caiu menos quando a Europa caía. Mais: entre 2001 e 2007 o PIB grego cresceu a uma taxa média de 4,11% ao ano, ao contrário, como bem sabemos, do que aconteceu a Portugal depois de 2001.)

Exagero emocional de uma “passante”? Não. Embora admita que os tons da minha aguarela destoem das cores fortes com que (nos) pintaram o retrato de um povo irado que incendiava automóveis. Foi uma face da moeda. A outra – também é bom lembrá-lo – foram as décadas de oligarquias políticas corruptas, elites duvidosas, somas de indevidos privilégios. Fugas aos impostos, fortunas fora da lei, abusos de toda a ordem que estilhaçaram a economia, desgraçaram o país e hipotecaram o seu futuro. Chega a ser milagroso que reste pedra sobre pedra deste massacre mesmo que, como de facto também sucede, tenham permanecido vícios e maus hábitos – de trabalho, de disciplina, de incumprimento de obrigações fiscais e outras. Uma vez mais e ao contrário do cliché, não são porém a regra.

Fosse como fosse, o solo político estava mais que adubado para que que um outsider do “sistema” chamado Tsipras tivesse entrado em Atenas envolto num halo de glória e que uma oferta política chamada Syriza tivesse tido tanta procura, independentemente do que “se” achar do partido. E do seu mapa de prioridades, da sua filosofia de vida, da sua idiossincrasia. Eleitoralmente nada disso está de resto em alta, como se reteve das ultimas eleições, mas como o sistema eleitoral grego premeia o vencedor com um cabaz de deputados, a modéstia do score de Tsipras foi automaticamente semidisfarçada com o artifício. E as alternativas? Não constam, ou ainda não constam. E, como tal, a vida continua. Incerta, vibrante, contrastada. Endividada.

Fim do segundo acto grego.

6. Se eu contasse a história de Hydra alguém acreditaria nela? E se as pedras desta ilha falassem haveria ouvidos para as glórias do seu passado? A grandeza militar fez deste lugar quase improvável a ilha mais importante de toda a Grécia – tinha a maior armada do Mediterrâneo oriental, o que foi decisivo na revolução que conduziu à independência em 1821. E da sua paisagem despida saíram ditosos filhos da Grécia, entre eles um Presidente da República.

Mas hoje o que guardo é a luz, a harmonia, a dureza estéril da pedra: nada ou quase nada nasce em Hydra, a subsistência vem por inteiro da mainland e vem por mar. As rodas, mesmo as das bicicletas, são proibidas desde sempre, à excepção da ambulância e do carro do lixo. Há burros e mulas – alguns de aluguer – e um incansável vaivém de barcos, para todos os destinos. E há as pernas, claro, ancestralmente habituadas a calcorrear as pequenas vielas que sobem, tortas e inclinadas, vila acima ou a caminhar pelos caminhos de terra batida. E embora o “grosso” da população habite em moradas brancas, anichadas em concha sobre o porto (maravilhosa arquitectura!), o hábito ajudou: a vida em Hydra sempre foi assim. E mais: a nenhum dos seus dois mil habitantes é permitido construir, apenas restaurar ou reconstruir. Imaculada, alheia ao progresso, incólume aos seus estragos, Hydra nasce todos os dias pela primeira vez.

7. Como se administra tudo “isto”? Tanto pouco mas tanto?

George E. Koukoudakis tem 37 anos e é o mais jovem presidente de câmara da Grécia, eleito há cerca de um ano como “independente” nas listas (pareceu-me) da Nova Democracia (“No, I don’t support Tsipras…”).

Administra-se, diz-me ele, com uma “infinita paciência” para enfrentar a “burocracia sufocante” dos diversos departamentos centrais, que “não autorizam nada”. E depois há as dificuldades da própria ilha, – a rede de esgotos, a recolha do lixo que por vezes causa problemas, o desemprego jovem na época baixa a rondar os muitos por cento…

Em miúdo George Koukoudakis distribuía legumes a mando do pai que tinha uma mercearia na ilha. Hoje é um “especialista em Estratégia Militar”, estudou em Atenas, formou-se na América, passou por Cambridge, tem três livros publicados. Invulgarmente vivo, viajado, estudioso (fala com apaixonada erudição da história da ilha), quando nos encontrámos acabara de escrever uma comunicação para uma reunião da Nato, para a qual fora convidado:

“Continuo a escrever, a dar aulas mensais em Atenas, não quero perder a ligação à minha carreira académica, levantando-me muitas vezes às quatro da manhã para estudar…”

No seu gabinete frente à Catedral pergunto-lhe se ele é um académico, um intelectual, um investigador ou… um político?”

Sorriso aberto: “Também penso nisso. E, para ser sincero, I am confused…”

É natural: quando se faz render os talentos com estes dons e este mérito, hesita-se sobre quais deles pôr a render.

Terceira surpresa. Terceiro acto grego.

8. Os barcos ainda não saíram, as pessoas ainda não vieram, as lojas ainda não abriram.

São sete da manhã em Hydra, o Mediterrâneo está quieto e não há ninguém. Ouvem-se apenas os sinos da catedral que batem as horas. E, depois, o silêncio. Certamente o mesmo silêncio que se ouve em cada um do sete mosteiros da ilha. É quase impossível não chorar. De acção de graças por estar vivo. Aqui. No último acto.