Fechadas em casa. Olhando o inimigo que inflexível avança.

O que viram pela janela por onde espreitavam? A morte – respondeu uma delas a uma jornalista. A tranquilidade com que proferiu aquele “a morte” era desconcertante. Quase grotesco.

As mulheres que fechadas em casa viram passar a morte estavam numa aldeia de Mação. Mas podiam estar fechadas num restaurante em Barcelona, num mercado de flores na Finlândia, numa rua dos EUA…

Ver passar a morte, cruzarmo-nos com ela numa rua cheia de turistas, numa manifestação ou numa estrada rodeada de árvores tornou-se o encontro que tememos aconteça nas nossas vidas ou na dos nossos filhos. Porque garantidamente sabemos que ela, a morte, vai voltar a passar. Apenas esperamos que não se cruze connosco. Com os nossos. Com os que conhecemos. Com os que apenas vimos… Esperamos sobretudo estar longe ou que, acabando a seu lado, ela não nos entreveja do lado de dentro da janela. Não nos ouça o bater descontrolado do coração. Sim, porque o medo existe. Cheira-se. Sente-se. Mas não se pode falar dele.

Oficialmente nós não temos medo. Felipe VI garante que a Espanha não tem medo. Os independentistas catalães que apostaram na migração proveniente de Marrocos em detrimento da dos países da América Latina. porque acreditam ser os magrebinos mais sensíveis à causa da secessão, também declaram que não têm medo. E claro espera-se que também digam que não há razões para ter medo aqueles que fugiram à frente da carrinha, os que por trás janelas os viram passar e os que viviam no bairro onde os supostos refugiados/migrantes de ocupação profissional indefinida acumulavam bilhas de gás numa casa que tinham ocupado. Contudo quem recorda a forma como o estado espanhol reagia de imediato aos atentados da ETA ou a qualquer acontecimento que pudesse denunciar a presença daquele grupo terrorista, como uma explosão acidental similar à que teve lugar na casa de Alcanar, não deixa de sentir medo perante a actual bonomia das autoridades espanholas face ao quotidiano destes alegados migrantes. E medo maior se experimenta quando se constata que nas horas que seguiram à explosão da casa de Alcanar não se reforçou a sério a segurança na Catalunha. Mas é no “Não temos medo” que por agora estamos.

Na verdade não é só é profundamente falso dizer que não temos medo como subjacente a essa aparente fanfarronice está a convicção de que a ameaça não é relevante. Ou pelo menos suficientemente grave para se poder assumir publicamente que se sente medo.

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Afinal é no assumir do medo que está a grande clivagem do nosso tempo. Um mundo dividido entre uma casta privilegiada que legisla sobre tudo e que controla tudo desde o pensamento à linguagem mas que nos momentos cruciais falha rotundamente na sua obrigação de garantir a segurança dos cidadãos.

Nesse mundo da casta é proibido falar de medo. A criminalidade dita pequena por quem não a sofre directamente é um assunto para demagogos. Os paióis são roubados mas todos os procedimentos, dizem, foram cumpridos. Os atentados acontecem mas ficamos a saber que pelo menos um dos protagonistas já estava sinalizado pelas nossas polícias. O fogo chama-se incidente pirotécnico e no limite tudo resulta das ignições. Em conclusão, não há razões para ter medo.

Este seria um mundo assepticamente perfeito de procedimentos e sinalizações não fosse a realidade. Daí a importância do negar a realidade e do diabolizar qualquer tentativa de a mostrar: falar da sustentabilidade da segurança social implica ser rotulado como estando contra os pensionistas. Indagar da capacidade da Europa para receber todos os imigrantes que a procuram vale de imediato ser acusado de xenofobia. Referir o crescimento da dívida leva à acusação de insensibilidade social. Questionar o que acontece nas escolas para que isto seja possível é de imediato transformado numa discussão sobre o populismo…

Esta transformação da testemunha num réu funciona: ninguém gosta de ser acusado para mais de um aleijão moral que se cola ao corpo.

Mas o terrorismo islâmico na sua imensa e óbvia brutalidade está a colocar sob pressão esta transposição automática da discussão dos problemas para o julgamento moral de quem os denuncia: no 11 de Setembro as vítimas eram americanas e como tal responsáveis por várias iniquidades mundiais. Já as primeiras vítimas europeias do terrorismo islâmico como aconteceu com o realizador Theo Van Gogh explicavam-se pelo seu “perfil controverso” ou por integrarem essa falácia que dá pelo nome de “anti-Islão”. (O conceito do “anti-Islão” reproduz passo a passo o antigo esquema da diabolização do anti-comunista naturalmente primário: admitia-se que algumas pessoas fossem contra o comunismo mas jamais se encontrou algum anti-comunista que não o fosse por más razões. Uns eram de extrema-direita, outros reaccionários, outros corruptos… e todos eles invariavelmente primários.)

À medida que cresce o número de vítimas aumenta a percepção de que qualquer um pode ser esfaqueado ou decapitado. E aumenta o medo que, dizem, não temos. Ciclicamente um novo slogan entra em cena poupando-nos ao ridículo do falhanço do anterior: antes do “Não temos medo” era o “Je suis…” Um mantra que por sua vez sucedeu ao “Terrorismo, nunca mais”, que por sua vez sucedeu ao “Imagine”…

Esse nosso versejar teve o efeito contrários às nossas intenções: tudo resultou em mais gritos de “Alá é grande”, mais facadas, mais carrinhas descontroladas afinal conduzidas por mão firme, mais lobos solitários que afinal tinham quem os apoiasse e escondesse, mais desequilibrados mentais que estavam de perfeito juízo…

(A estupefacção pelo falhanço da nossa retórica apesar de tudo não deve ser tão grande quanto a perplexidade dos dinamarqueses ao constatarem que nas suas mesquitas se ensina o ódio. Isto apesar de a Dinamarca ter acolhido milhares de refugiados muçulmanos particularmente jovens rapazes provenientes da Síria e de ter lançado um programa destinado aos que abraçaram o terrorismo significativamente intitulado “Abrace um terrorista”. Nos vídeos promocionais do dito “Hug a Jihadi”, cujo visionamento aconselho vivamente, ensinam-nos que os jovens se tornam terroristas porque ao emigrarem dos seus países de origem para a Europa, no caso para a Dinamarca, se sentem apanhados entre dois mundos. Espantosamente nem os protagonistas do recurso à bomba porque se sentem apanhados entre duas culturas nem as autoridades da Dinamarca se interrogaram um segundo sequer sobre o assombroso facto de jamais chineses, portugueses, vietnamitas, moçambicanos, espanhóis, brasileiros… que tanto têm migrado para países tão diferentes dos seus, terem alguma vez optado por mitigar a sua desorientação cultural esfanicando os cidadão dos seus países de acolhimento ou doutros quaisquer. Pelo contrário aceitam trabalhos que mais ninguém faz, poupam para enviar dinheiro para as suas famílias e para o melhoramento das suas terras. Bombas é que não há notícia que tenham pago ou custeado.)

O porquê desta anomia face ao terrorismo islâmico é conhecida: a esquerda trocou os operários pelos muçulmanos e esquecidos nas periferias urbanas os operários acabaram atrás da janela a ver o que oficialmente não existe. Em países como a França vêem todos os dias o fundamentalista que, sem pegar em facas, causa conflitos para que a sua mulher use burka na rua, para que as suas filhas não sejam atendidas por um médico, para que no refeitório da escola não se cozinhe carne de porco, para que os judeus deixem de passar por aquela rua, para que os comerciantes não vendam álcool, para que a festa de Natal não se realize…

Agora que os amanhãs já não cantam a Internacional a caminho de uma sociedade sem classes, a fúria da rua árabe e toda aquela litania da colonização, as cruzadas e tudo o que mais lembrar, configuram-se como o anúncio do admirável mundo novo que mais uma vez se anuncia: uma sociedade em que as comunidades substituíram os cidadãos; as minorias impõem as suas particulares circunstâncias como regras e os revolucionários se tornaram reguladores dos ressentimentos.