O respeito formal que na atualidade se declara à democracia – da Europa a África; da extrema-esquerda à extrema-direita – força a que nos interroguemos sobre as atitudes e práticas que a tornam substantiva. Isso porque a vaga de democratizações acelerada na pós-guerra fria implicou a legitimação, pelos sistemas democráticos, de elementos até aí atípicos, num contexto mundial em que a paroquialidade desta discussão, antes delimitada apenas a algumas regiões, passou a fazer parte do passado. Uma democracia ‘velha’ como a inglesa não assume hoje o valor de compartimento isolado comparativamente a democracias ‘novas’ como a chavista, a russa ou a zimbabueana. Do mesmo modo, a visão democrática do PCP português, do Syriza grego ou da Frente Nacional francesa não é mais um universo à parte em relação à visão democrática, por exemplo, dos Partidos Socialistas europeus ou do PSD português e da CDU alemã.
Ou seja, a crescente elasticidade dos referentes que orientam o ideal democrático e balizam as práticas políticas correspondentes passou a fazer parte substantiva do jogo político. Tal elasticidade aproxima-nos de estádios de ‘democracia anómica’ o que, na prática, gera o esvaziamento da capacidade de sedução do ideal democrático comparativamente aos ideais populistas. Até porque grande parte das sociedades do século XXI dificilmente encontra respostas eficazes à inevitável necessidade de uma certa carga de elitização e sofisticação das democracias, sempre presente desde as suas mais remotas origens na Grécia Clássica. Por seu lado, mesmo algumas sociedades com essa capacidade de resposta deixam-se voluntariamente contaminar por ideais populistas que correm pelo mundo em rédea solta.
Nesse sentido, o ‘golpe’ de legitimidade política de António Costa e do PS em Portugal significa o avanço da ‘terceiro-mundialização’ das democracias ocidentais. Enquadra-se na tendência de forçar a integração de quase tudo e todos no jogo dito democrático. Assim sendo, será que poderemos continuar a falar de democracias na verdadeira aceção da palavra?
O mundo transformou os regimes democráticos em equivalentes dos partidos únicos da época das ditaduras. Quando só existe um partido político, na prática ele não é propriamente isso. Pouco mais será do que uma organização cívica que monopoliza o exercício da atividade política. Os partidos políticos propriamente ditos apenas fazem sentido em ambientes de concorrência entre pares. Se tal não se verificar e salvo as devidas distâncias, é como fazer funcionar competições desportivas com uma única equipa.
Por outro lado, parece-me consensual que a democracia tem na relegitimação cíclica através do voto a sua génese, mas nenhuma democracia se esgota nesse pressuposto. Daí que o poder tenha de ser instituído por fontes de legitimidade complementares. Numa publicação póstuma datada de 1922, Max Weber tipificou as fontes de legitimidade do poder em estado puro: o poder legal em virtude de um estatuto burocrático; o poder tradicional em virtude de uma fé historicamente presente; e o poder carismático resultante da aceitação das capacidades de um dado indivíduo.
Quase um século depois, mantendo-se um mesmo regime democrático, persistindo as mesmas instituições que participaram em anteriores exercícios idênticos, bem como estando em causa a legitimação de um cargo ou função estabilizado num dado sistema político – o génio de Max Weber seria provavelmente incapaz de antecipar que, para gerar soluções convenientes num dado momento, a parte maioritária dos envolvidos subvertesse de modo abrupto o sentido da interpretação das fontes de legitimação do poder. É o retrato do rumo da governação em Portugal iniciado em finais de 2015, dias de transição forçada de um modelo de legitimação do poder centrado num sujeito individual vencedor das eleições para a legitimação centrada num sujeito coletivo nascido de uma epifania.
Como no âmago dessa viragem histórica está o mais relevante partido político fundador do atual sistema, o PS, essa corrida ao poder alimenta ostensivamente a fragilização dos significados da legitimidade em democracia, fenómeno ciclicamente repetível em países periféricos cuja instabilidade política alimenta a pobreza dos povos. A ‘jogada’ decorre numa sociedade sem um lastro consistente de muitas gerações identificadas, no seu quotidiano, com o ideal democrático. Por isso, será difícil identificar contributos mais eficazes para o agravamento da distância entre o formal e o substantivo, entre o manifesto e o latente (para recorrer a termos freudianos) ou entre o poder e o povo (expressão de Vasco Pulido Valente ajustada à primeira república portuguesa).
Não se revela menos atípico ainda constatar que qualquer das fontes de legitimidade do poder possa ser invocada próxima do estado puro, minimizando a ponderação das demais: ‘Agora é o tempo de nos orientarmos pela pureza do voto e de ignorarmos hábitos relativamente sedimentados’. A esse propósito, Max Weber quando sistematizava os tipos ideais puros não menos sublinhava a sua natureza abstrata. Por isso, à medida que nos aproximamos da complexidade da realidade vivida, os tipos ideais puros devem ser mitigados. O puro conceptual é indispensável apenas à construção racional abstrata. O ponderado, por seu lado, é indispensável ao nosso ajustamento à vida quotidiana tal como existe e habitualmente funciona.
Isso, porém, em nada se confunde com a constatação, por esse mundo fora, da enorme elasticidade dos princípios orientadores das democracias. Consoante as conveniências, as lutas armadas ou a participação em ditaduras antecedentes não constituem obstáculos à legitimação de forças políticas que não sentem necessidade de qualquer mea culpa sobre violências ou abusos do passado cujos resquícios, por essa razão, transitam para as democracias. Toleramos que a proximidade a atitudes e comportamentos corruptos não afetam a participação plena no jogo democrático. Aceitamos que abusos e violências manifestas no exercício do poder ou no âmbito da participação política, incluindo os que no plano interno ou externo apoiam ostensivamente tais práticas, não impliquem censuras ou mesmo limitações à sua participação plena no jogo democrático. Tomamos como aceitável que o recurso ao ‘poder da rua’ ou a ameaça constante da sua instrumentalização se transforme em regra e não em exceção, o que fragiliza a razão de ser das instituições das democracias. Entre outros exemplos.
E que referentes sobram para marcar as fronteiras entre o que é e não é legítimo? Que núcleos de elitização ou de sofisticação distinguem as democracias dos seus mais perigosos inimigos, os regimes populistas, fronteiras cuja fragilização abriu as portas a Mussolini, Hitler ou Chávez? Paradoxalmente, é da necessidade dessas fronteiras que sobressai a força e a fraqueza das democracias: quanto maior a flexibilidade dos referentes que permitem a sua globalização, tanto maiores os riscos que correm.
Pelo menos no Ocidente, gestos como o do PS do Dr. António Costa tornam evidente que a preservação da qualidade das democracias, ou mesmo a sua sobrevivência, estão muitíssimo mais dependentes da afirmação de ideais conservadores (que tomam em consideração, para além do estrito formalismo político e constitucional, uma certa tradição dos sistemas sociais e políticos instituídos, bem como ideais identitários que definem a matriz civilizacional dos povos) do que de ideais progressistas. Os últimos existem para ‘transformar’ (eufemismo de subverter) as ordens políticas e sociais estabelecidas precisamente em tempos de democracia.
O caso português tem tudo para se revelar exímio nos seus paradoxos. Graças aos seus inimigos mais primários, nada falta para ser legítimo inferir que o professor Salazar foi fortemente legitimado pelo povo, se descontarmos o detalhe da liberdade de voto, uma vez que o seu carisma pessoal, que também funcionava próximo do estado ‘puro’, poderá ser interpretado como compensador do que lhe faltava. Quem sabe ainda se a representação póstuma de Salazar germinará um modelo de democrata ‘progressista’ ou ‘alternativo’ da sua época, considerando a vacuidade crescente do conteúdo das democracias.
É para onde caminhamos de acordo os recentes ‘avanços’ no culto da legitimidade tipo bota-de-elástico, o presente do Natal de 2015 oferecido à democracia (portuguesa e não só) pelo Dr. António Costa e pelos que toleram a sua ‘reinvenção’ dos fundamentos da legitimidade política do cargo eletivo de primeiro-ministro.