Se o teste dos três «Dês» (descolonizar, democratizar e desenvolver) mede a distância entre o sonho e a realidade saídos do 25 de Abril de 1974, o falhanço da subversão social de há cinquenta anos fica bem mais cristalino com o teste dos três «Pês» (padre, professor e político). Bastaria o exercício de solicitar a pessoas comuns que colocassem três dimensões estruturantes da vida coletiva por ordem decrescente de importância: (1) ordem moral (em sociedades de matriz cristã filia-se necessariamente à milenar tradição religiosa institucionalizada nas igrejas cuja figura social de referência foi, é e será o padre); (2) ordem racional (o referente regulador da vida coletiva associado ao conhecimento científico, académico ou técnico institucionalizado em universidades e escolas cuja figura social de referência foi, é e será o professor); e ordem política (os poderes tutelares que asseguram a governação legítima dos povos cuja figura social de referência foi, é e será o político). Na eventualidade das escolhas de senso comum desobedecerem à lógica esperada – 1.º poder social da moral; 2.º poder social da razão; 3.º poder social da política – a subversão social iniciada em 1974 terá tido um impacto mais profundo do que aquele que este texto considera.

Desde a origem contemporânea com a Revolução Francesa (iniciada em 1789) depois confirmado a partir do impacto mundial bem mais substantivo da Revolução Russa (1917), o sujeito político de esquerda vive da subversão da vida social movido por uma pulsão narcísica que o faz centrar tudo em si mesmo. É incapaz de conceber que antes da política está a razão e antes desta está a moral, bem como que esta lógica existencial da espécie humana tem de ter tradução em figuras sociais de referência que regulam a vida quotidiana e, enquanto tal, devem ser respeitadas e promovidas. Foi, é e será justamente ao padre que o político de esquerda tem orgulho em fazer guerra manifesta ou latente para se impor, enquanto ao professor move uma persistente guerra velada subjugando o último pela fragilização constante do seu prestígio institucional, social e económico. Compreender a natureza dessa subversão social e o seu impacto perverso na vida de todos nós deveria ser suficiente para gerar uma transformação profunda rumo a uma sociedade bem mais justa e bem mais próspera.

Começando pela relação entre o político e o padre, a mesma simboliza acima de tudo a disputa entre caminhos bem distintos da ordem moral das nossas sociedades consoante a primazia seja de um ou de outro. Ao fazer do combate ao padre a razão de ser da sua existência, o político de esquerda desde a origem, no século XVIII, nunca se revelou capaz de fazer transitar as sociedades da centralidade da moral espiritual ou religiosa (a regulada pelo padre) para a centralidade da moral laica ou cívica (regulada pelo político).

Quanto maior o ascendente da esquerda, mais as sociedades desembocam num limbo moral que as desumaniza. Nas pessoas comuns, avolumam-se hoje dificuldades de enquadrarem, no plano moral, fenómenos como a pedofilia, eutanásia, aborto, ideologia de género, corrupção, criminalidade (da pequena à violenta), parasitismo social e subsidiodependência, imigração ilegal, violência social (na qual se inclui da violência doméstica contra crianças, mulheres ou idosos à indisciplina nas salas de aula), por aí adiante. Em tais circunstâncias, o equilíbrio mental coletivo torna-se impossível, sendo a crise de saúde mental evidência disso. O psicólogo social Serge Moscovici explica que o pensamento social precisa de se organizar em torno de fronteiras muito claras, no caso, entre Bem e Mal, Certo e Errado, Justo e Injusto. No último meio século o político de esquerda rumou na direção contrária.

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Não existem milagres. O resultado está no ciclo de anomia social em que nos afundamos porque a ordem moral foi conduzida à falência. Não é necessário ser crente religioso e muito menos venerar a figura social do padre para encontrar a bóia de salvação. Nas sociedades europeias e ocidentais de matriz cristã, basta respeitar e promover o respeito por essa figura social de referência desde a infância e adolescência. O problema é que o político de esquerda não sobrevive em tal contexto. Resta-nos escolher entre se o queremos tal como é ou, pelo contrário, se passamos a preferir viver em sociedades com uma ordem moral renovada, digna, viável.

Quanto à relação entre o político e o professor, também simboliza bem mais do que a disputa entre figuras sociais de referência. Está acima de tudo em causa a escolha entre uma sociedade regulada por um poder político que se esgota em si mesmo (quando o político é socialmente mais valorizado do que o professor) ou, pelo contrário, uma sociedade que valoriza a centralidade da razão enquanto a pré-condição da eterna busca da verdade (quando o professor é uma figura social de referência acima do político). Tal como no ponto anterior, é necessário decidir a aceitação ou a recusa do narcisismo do político.

Desde a década de setenta que o político da esquerda ocidental segue a cartilha maoísta da Revolução Cultural Chinesa (1966-1976) disseminada a partir das universidades: Não é o professor que ensina, é o aluno que aprende (autoaprendizagem); Não é o professor que avalia, o aluno deve autoavaliar-se (autoavaliação); Não é o professor que impõe as regras de sala de aula, mas deve negociá-las a toda a hora com os alunos (autorregulação). Não existem registos históricos de pressão ideológica mais radical de destruição da figura institucional e social do professor negando-lhe o direito de ensinar (transmitir conhecimentos), avaliar e regular a sala de aula, para mais coincidente com o ciclo de massificação da escolarização. Não foi obra do acaso o caos nas salas de aula gerado pelas teorias do ensino centrado no aluno, bem piores do que o ensino centrado no professor, quando o ensino deve ser centrado no valor abstrato do conhecimento. Na Europa e demais Ocidente, o martírio dos professores foi o de serem arrastados pela esquerda, não pelas ruas como na China da Revolução Cultural, antes para níveis de sofrimento físico e psicológico sem precedentes.

Como se não bastasse, o cerco do político ao professor também resultou de se ter feito crescer de forma irracional currículos e horários escolares dos alunos para os fechar ao máximo em escolas, a via mais fácil de lavagem cerebral das sociedades a partir da infância. Isso transformou o sistema de ensino num sorvedouro inútil de orçamentos do Estado, depois resta a cada governo cortar no poder de compra dos professores, progressão nas carreiras, congelar o tempo de serviço e outras barbaridades.

Pode a razão sobreviver socialmente a tamanha irracionalidade do político de esquerda contra o professor? Certo é que não existe mistério algum no facto de a geração (estatisticamente) mais qualificada de sempre ser a que menos goza de liberdade intelectual e a que menos usa a razão para se orientar no meio envolvente.

Como é possível tolerar uma classe política que atropela figuras sociais de referência do campo da moral social (padre) e do campo da razão/intelectual (professor) para, em compensação, entregar a regulação da vida social quotidiana a si mesma (político) e a figuras menoríssimas seletivamente escolhidas: «ativista», «minoria» (racial, sexual, etc.), «artista» (música, futebol, televisão, etc.), «imigrante», entre outras. Sendo respeitável, no entanto tal carnaval pitoresco prejudica mais do que acrescenta à dignidade da ordem moral, ordem racional, eterna busca da verdade, sanidade mental coletiva. Libertemo-nos, por isso, do narcisismo patológico do político de esquerda.