Há semanas, uma pergunta de Eurico Brilhante Dias terá plantado arrepios na política e arredores: “e se Ricardo Salgado conta o que sabe?” Sim, e se o ex-presidente do BES resolve colaborar com a justiça, dizer tudo, explicar tudo, com todas as datas e todos os nomes? Quem foi “dono disto tudo” deve provavelmente saber disto tudo. E se ele fala?
Ora bem, àqueles a quem o porta-voz do secretariado do PS criou alguma expectativa ou roubou alguma tranquilidade, quero dizer: não se entusiasmem, nem se preocupem. Porque ele não fala. É que se decidisse ajudar a justiça, Salgado teria muito a perder e nada a ganhar, a não ser eventualmente uma consciência limpa, mas isso é outra história.
Imaginem que Salgado não fala, não colabora, não diz nada, espera pelas diligências, arrola uma multidão de testemunhas, arrasta os pés. Em primeiro lugar, ganhará imenso tempo. Em segundo lugar, poderá apostar no descrédito do sistema judicial para toda a gente começar a ter dúvidas acerca do que ele fez ou não fez. Mais: nos jornais, na rádio e na televisão, vão defendê-lo todos aqueles que do silêncio dele dependem, e não o vão atacar aqueles a quem o “caso BES” importa apenas para bater no governo ou no governador do banco de Portugal. Um dia, o terreno estará pronto para Salgado avançar com o seu relato de vitimização, caucionado por algumas notabilidades do regime. Por fim, tirando uma meia dúzia de excitados, a maioria das pessoas já não saberá no que acreditar.
Imaginem agora que Salgado fala, colabora, diz tudo, revela, ajuda, dá os nomes, as datas, as situações, as provas. Em primeiro lugar, isto só quer dizer uma coisa: Salgado confessou, e como a justiça portuguesa, mais do que de provas, vive da auto-incriminação, e a confissão de um só não implica a confissão dos outros, este processo passaria a ter um culpado, mas não é certo que viesse a ter outros. Ou seja, Salgado, falando, iria apenas garantir a sua própria condenação — e com uma pena pesada, porque a justiça portuguesa não premeia quem colabora. Em segundo lugar, ao virar-se contra aqueles que agora poderão ter algum interesse em defendê-lo, Salgado iria criar-lhes um interesse em atacá-lo. Nos jornais, na rádio, e na televisão, entrariam rapidamente em campanha para desacreditar Salgado, até como maneira de desvalorizar o seu testemunho.
Nos EUA, talvez Salgado tivesse vantagem num acordo com o Ministério Público, de que resultasse uma pena leve, em troca de uma confissão integral. Isso é assim, porque nos EUA a ideia de justiça não é incompatível com a ideia de eficiência: o sistema está disponível, através por exemplo de “plea bargain”, para compensar o criminoso que colabora, se daí resultar uma justiça mais rápida e mais completa. Não é assim em Portugal, onde um conceito de justiça absoluta, cega, sem preocupação com a eficácia, dissuade qualquer cooperação. Por isso, a justiça americana, quando apanha uma peça, tem a possibilidade de fazer cair o dominó. Em Portugal, pelo contrário, é provável que o suspeito que ajudou a justiça venha a ser o único condenado do processo. A justiça inflexível funciona, assim, como se o seu objectivo fosse fazer respeitar o Código de Honra da Mafia.
Em teoria dos jogos, existe uma situação conhecida como o “dilema do prisioneiro”. É assim, de forma simplificada: dois presos sabem que se nenhum confessar, serão ambos soltos, mas que se um deles confessar primeiro, esse terá uma pena mais leve e o outro uma pena mais pesada. A conclusão é que ambos tenderão a cooperar com a justiça, incriminando-se, para se protegerem do risco de o parceiro falar antes. Em Portugal, a justiça poupa todos os seus “prisioneiros” a este dilema, na medida em que quem falar arrisca a pena mais pesada. Por isso, não tenham esperanças – nem receios: ele não fala.