Enquanto escrevo Portugal está pendente das decisões do comité central do PCP, Sócrates continua em tournée por auditórios de província e conhecem-se as medidas acordadas pelo PS nas negociações que tem mantido com o PCP e o BE. Parece um mau filme, não é? Pois é mas convenhamos que tudo aquilo que nos está a acontecer resulta não do jogo táctico de António Costa, mas sim do estatuto de superioridade moral e política que há décadas se dá à esquerda. Só que esse estatuto, que permite a Costa fazer esse jogo sem morrer de ridículo, colocou o país num beco sem saída: em nome da democracia e das suas instituições temos de aceitar ficar nas mãos de quem não as respeita e tem delas uma concepção instrumental.
Comecemos pelo óbvio: ninguém tomaria Costa a sério caso ele fosse líder do PSD e, tendo perdido as eleições em que se propunha ter maioria absoluta, pretendesse, para se manter na liderança do seu partido, governar com o PNR e quejandos. Dir-me-ão: o PNR não tem votos.
Pois não, precisamente. Mas já lá vamos. Coloquemos para já a questão ao contrário: como reagiria o PS caso tivesse ganho as eleições e visse o seu governo a cair na AR e Cavaco a dar posse a um governo que, à direita, reproduzisse a plataforma (ou grupo etnográfico) que, à esquerda, se propõe agora governar Portugal? Pois é, o PS não via tal coisa porque o PS não aceitaria ser tratado desse modo. E ponto. Personalidades nacionais e internacionais, organismos de luta pela transparência, Bruxelas em peso (quiçá Obama e o papa Francisco) estariam mobilizados contra o aventureirismo e as golpadas de um grupo que, diriam cheios de razão, tinha como denominador comum tomar conta do aparelho de Estado. Aqueles que no centro tivessem apoiado tal propósito que, não tenho quaisquer dúvidas, não se consumaria jamais, pagariam um preço político e social elevadíssimo.
E aqui chegamos ao que interessa e ao que me interessa: porque pode isto acontecer com o PS e não com o PSD ou o CDS? Ou, e voltando à questão do PNR, porque é o nacionalismo do PCP patriótico e o do PNR xenófobo? Ou, particularizando, porque é que a violência e a homofobia dos seguranças da Festa do Avante são pretexto para anedotas e a violência e a homofobia dos ultras de direita são crimes hediondos?
Porque há décadas se aceita a superioridade da esquerda. Superioridade moral e política. Goste-se ou não, em Portugal ser anti-fascista é uma glória. Ser anti-comunista uma acusação. O nazismo é um crime e o comunismo uma utopia: quantas, mas ó quantas vezes se ouve repetir que o comunismo é uma ideia generosa que, infelizmente, nunca resulta? (Quem sabe, algum dia, afinal há sempre uma primeira vez para tudo, não é?)
Esta dicotomia está tão enraizada que levou à transposição para a política da tese da vacina e seu reforço. Ou seja, parte-se do princípio que precisamos de experimentar os modos de governar dos radicais de esquerda para constatarmos que eles não resultam. (Em 1975, Kissinger também achava o mesmo sobre Portugal, mas Kissinger vivia nos EUA no pouco tempo em que não estava dentro de um avião. O que é espantoso é que nós, os que temos de viver a epidemia para ficarmos vacinados, também achemos o mesmo.)
Valha a verdade que há poucas experiências com resultado mais garantido do que essa. Acaba-se sempre com países empobrecidos, liberdades diminuídas, uma sociedade desgastada por um quotidiano de incidentes fracturantes e um número crescente de dependentes do Estado, seja entre a oligarquia dos empresários e quadros do regime seja entre o número crescente daqueles a quem, em nome do combate à pobreza e às discriminações foram retiradas competências sociais e autonomia. Acredita-se que face à evidência da catástrofe os povos ficarão vacinados. Por algum tempo, claro. Pois dá-se também como adquirido que não basta passar por isso uma vez mas sim que temos de afectar ciclicamente alguns anos da nossa finita vida a desempenhar o papel de cobaias da experiência governativa da esquerda radical e seus parceiros porque a memória-vacina dos seus desmandos vai perdendo eficácia.
Existem poucas situações mais constrangedoras e simbólicas da miséria daquilo a que chamamos debate ideológico do que esta identificação entre a defesa da liberdade e os reforços da BCG.
A nossa redução à condição de cobaias é o preço que pagamos por termos desistido de desmontar o discurso de uma proposta para governar sociedades que assenta numa visão estatista da sociedade e numa perspectiva primitiva porque recolectora da vida; não se cuida produção da riqueza mas sim de como a conseguir nos outros sejam os outros as grandes fortunas, os grandes lucros, os outros países, os que fogem aos impostos, os ricos, a classe média… Note-se que a superioridade moral da visão estatista mantém-se inalterada não apenas no discurso dos radicais mas também no dos socialistas democráticos. Quantas vezes não ouvimos já os líderes socialistas a declararem, consternados, que se vêem forçados a privatizar ou a reduzir as despesas do Estado apenas porque a tal foram obrigados pelos mercados? Ou seja, nunca assumem que o seu modelo de sociedade não funciona. Simplesmente agentes externos impedem que ele vingue e como tal vêem-se obrigados a “pactuar”, a “ceder”, a “ser realistas” a ser menos “puros”…
Como não acredito na teoria da reencarnação – logo só conto viver uma vez – e nasci nos anos 60 do século passado começa a faltar-me tempo para mais esta campanha de vacinação. E falta-me a paciência para explicar que a ideologia não é um sub-capítulo da biologia.
Não sei se desta aprenderemos que só chegámos aqui por nossa culpa. Mas tenho a certeza que enquanto não se desmontar o discurso da demagogia, optando apenas por dizê-la ineficaz, deixa-se sempre em cima da mesa a possibilidade de os demagogos chegarem ao poder.
PS. Entre os refugiados que chegaram a Portugal este fim de semana veio esta pessoa coberta de negro que se presume ser uma mulher. Começo por estranhar a tolerância dos aeroportos portugueses e não só face a esta forma de vestir pois sendo os aeroportos locais onde a segurança é uma prioridade parece-me estranho que se aceite que alguém se cubra deste modo e não se tolere o inverso. Ou seja que alguém embarque e desembarque nu ou mesmo pouco vestido. Não só simplificava muito alguns procedimentos como diminuía os tempos de espera. Vai contra os nossos costumes? Sim, mas andar nesta figura também.
Em seguida, e desejando uma boa estada à pessoa que assim se apresentou no país que a acolheu (e em que dirigirmo-nos a alguém com a cara tapada é sinónimo de doença, medo ou falta de respeito), não vejo ser possível que a pessoa em questão pretenda ser atendida num serviço público, num banco ou conduzir qualquer veículo. Presumo que também não pretenderá ter aulas nestes propósitos ou obrigar uma empresa a contratá-la para atendimento ao público.
Fazer de conta que não vimos esta pessoa e outras que por aí andam em igual apresentação não resolve nada. Que queiram andar em casa, na rua ou na praia assim vestidas é um problema delas. Mas mais do que isso é um problema nosso.