Em Espanha, nas eleições municipais e autonómicas, o PP, com 27% dos votos, conseguiu derrotar o PSOE, com 25%. Essa, porém, já não é a história. No radar da imprensa bem-pensante, o que conta é outra coisa: o chamado “fim do bipartidarismo”, com a ascensão eleitoral de novos partidos. De facto, os gráficos de barras com as percentagens de votação de cada partido lembram agora pedaços de um arco-íris – além do PP e do PSOE, aparecem o Ciudadanos (terceiro partido municipal), as candidaturas do Podemos (que venceu em Barcelona), mais a Esquerda Unida (que encolheu) e os nacionalistas (abalados na Catalunha).
Deixou de haver, na estatísticas eleitorais, grandes partidos. São todos pequenos e médios. Há sem dúvida mais escolha, mas há também menos clareza: o PP perdeu votos e lugares, mas o PSOE não os ganhou. Aos socialistas, resta-lhes dizer que ainda são a “alternativa”, por terem conseguido manter-se à frente dos novos partidos. Mas a verdade é que foram despromovidos a terceiro ou mesmo a quarto lugar nas grandes cidades. Ou seja, o primeiro resultado do fim do bipartidarismo é que o voto deixou de provocar alternâncias imediatas e claras no governo, como quando o poder oscilava entre dois pólos.
Agora, as eleições limitam-se a criar um mapa caótico, a partir do qual quase tudo é possível. Na manhã de hoje, o PP já sugeria “pactos de estado contra o radicalismo”, enquanto os candidatos do Podemos propunham a formação de “uma maioria pela mudança”. Ambos procuravam assim vincular ou condicionar os outros partidos. Este é o segundo efeito do fim do bipartidarismo: os cidadãos votam, mas deixaram de saber no que votam, porque não é fácil adivinhar qual a composição e a orientação dos governos que vão sair do ciclo pós-eleitoral de negociações e acordos. Ou seja, aumentou a opacidade do sistema político.
PP e PSOE concentraram 52% dos votos. Perderam 13 pontos percentuais em relação às últimas eleições autonómicas e municipais. “O desgaste dos partidos velhos”, como diz Pablo Iglesias, não é apenas espanhol. Acontece apenas que em Espanha não existem os sistemas eleitorais maioritários da França ou do Reino Unido, que mantêm de fora os “partidos emergentes”, como o UKIP ou a Frente Nacional.
Para explicar esta evolução, é preciso começar pelo fracasso dos partidos estabelecidos. Os tribunais e a imprensam desnudaram a sua corrupção e a sua promiscuidade. Mas acima de tudo, os velhos partidos foram vítimas da sua instalação no Estado, que usaram para desenvolver relações de tipo clientelar com as populações. Quando a crise orçamental diminuiu os meios com que seduziam os eleitores, começaram a perdê-los. Há mais, no entanto: o bipartidarismo é a última baixa de uma transformação política iniciada há muito tempo. Primeiro, desapareceu a militância partidária (por exemplo, o Partido Trabalhista no Reino Unido passou de um milhão de filiados na década de 1950 para 190 mil hoje). Depois, diluiu-se a identificação ideológica como razão das opções de voto. As preferências políticas tornaram-se superficiais, instáveis, sobretudo negativas. Em crise, não sabemos o que queremos, só sabemos que não queremos isto. Não acreditamos, não confiamos, e não temos tempo para pensar em alternativas. Vivemos de acessos de mau humor, de bruscas indignações virtuais. É a política das redes sociais.
Foi neste ambiente que surgiram marcas partidárias que, até ver, não parecem corresponder a mais do que ocasionais mobilizações de votos de aversão e de rejeição, protagonizados por um novo tipo de empresário político: o demagogo que vive de acometer moinhos de vento (“eles”, os “políticos”, os “partidos do poder”, os “ricos”, as “instituições financeiras”…), de meia dúzia de frases feitas (“fazer história”, “viragem”, “primavera democrática”…), e das vociferações apropriadas para arrancar aplausos e citações. A falta de experiência é agora a máxima virtude: o melhor político é aquele que, sejam quais forem as suas ideias e intenções, nunca governou e portanto nunca se comprometeu.
O tempo das maiorias absolutas acabou. A Espanha devia entrar agora na era dos pactos e das coligações. Mas vão o Podemos ou o Ciudadanos arriscar as suas virgindades políticas em alianças estáveis? Ou, pelo contrário, mostrar-se incapazes de entendimentos ou de ir além de conjugações meramente negativas (contra o PP ou contra o radicalismo) e necessariamente voláteis? Há quem espere que, pelo menos, a desmultiplicação partidária pressione a classe política a portar-se melhor do que no passado. Nem sobre isso pode haver certeza. No Brasil, a profusão de pequenos e médios partidos sem bases ideológicas claras fez da corrupção a maneira mais expedita de congregar apoios para viabilizar governos. Na história, é frequente obtermos o contrário do que queríamos quando destruímos o que existe.