Parece que em Portugal a Justiça morreu outra vez. Ou pelo menos ficou ferida de morte.

Por ser lenta? Por ter ocorrido um grave erro judiciário? Por ter deixado escapar um bandido? Por ter condenado um inocente?

Nada disso. De acordo com a generalidade dos comentadores e o julgamento apurado de um vetusto matutino, porque uma senhora procuradora, não tendo conseguido produzir acusação contra algumas figuras gradas do regime, teve a desfaçatez de expor no seu despacho as dúvidas e as suspeitas que pendiam, e pendem, sobre essas personagens.

Foi “sede de vingança, presumindo culpa havendo a mais leve suspeita sempre que se trata de alguém com sucesso na vida”, proclamou-se no Diário de Notícias. “Depois deste despacho de arquivamento, a senhora procuradora não devia poder investigar mais nada”, acrescentou-se noutra coluna. Para mais, esses maliciosos agentes da justiça andaram a “plantar” notícias nos jornais para que “a pessoa fosse condenada, ferida no seu bom nome, na sua honra, e sem que nada pudesse fazer contra isso”, sentenciou, nas páginas do mesmo jornal, o idiota útil do costume.

Como não podia deixar de ser, a vítima de tantos maltratos teve direito a longa e prestimosa entrevista, onde anunciou que ficou “estarrecido” e “preocupado” com o teor do despacho de “arquivamento com insinuações”. Tão preocupado e tão estarrecido que considera estarem em causa “os direitos fundamentais dos cidadãos” e se espanta por o Presidente da República, “com opinião sobre tudo”, não se ter já pronunciado.

Manuel Dias Loureiro – porque é de Manuel Dias Loureiro que temos vindo a falar – é, portanto, um mártir. Mais um mártir da Justiça, mais um a juntar-se a essa lista de sacrificados que inclui José Sócrates, Oliveira e Costa, Armando Vara, Duarte Lima ou Isaltino Morais. E o jornal-farol do grupo de imprensa presidido pelo seu amigo e advogado, Proença de Carvalho, trata de fazer justiça. Os amigos são para as ocasiões, e nessas ocasiões é bom que não faltem, algo de que José Sócrates também já beneficiou, como a seu tempo registei (ao mesmo tempo que criticava a hipocrisia de muitos jornalistas).

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Ex-secretário-geral do PSD, ex-ministro, ex-conselheiro de Estado, Dias Loureiro foi visto e tratado, anos a fio, como um “intocável do regime”. Mesmo “fora da política”, era ele que escrevia as moções que se levavam aos congressos do PSD, até os discursos que se liam nas tomadas de posse. E por estar “fora da política” podia continuar a cultivar as suas amizades e os seus talentos. Nalguns casos, relações antigas, como com Jorge Coelho. Noutros, interesses musicais comuns, como com Almeida Santos. Noutros ainda, a paixão pela caça, permitindo-lhe reunir no seu couto perto de Mértola políticos e jornalistas capazes de jurarem pela sua probidade. Noutras, cumplicidades surpreendentes, como as que o levaram a apresentar em 2008, “comovido”, a biografia hagiográfica de José Sócrates O Menino de Oiro do PS.

“Quando saí da política devia 20 mil contos, comecei do zero”, disse nesta sua entrevista ao Diário de Notícias. A sério? E então a vivenda que tinha comprado e remodelado no Estoril, em 1991, por 150 mil contos em dinheiro da época (com correcção monetária, 1,5 milhões de euros de hoje)? Uma herança e venda de propriedades em Coimbra, mais a boa fortuna nos jogos de Bolsa, explicou na altura ao Expresso, que investigou essa compra. Uma resposta estranha, pois a família era humilde e os irmãos eram sete, uma resposta que hoje parece esquecida, substituída pelo “comecei do zero”, e com dívidas.

Mas não continuemos por aqui, pois seria difícil neste espaço recordar todos os casos nebulosos em que Manuel Dias Loureiro esteve envolvido, dos negócios do BPN/SLN – um dos quais esteve na origem da investigação judicial – ao controverso e dispendioso SIRESP, o sistema de comunicações vendido às forças de segurança. O importante é perceber que não, a Justiça não morreu, e que sim, é verdade, é mesmo difícil investigar a corrupção em Portugal.

Comecemos pelo primeiro ponto. O que é que a procuradora fez que não devesse ter feito? Na verdade, pouca coisa. Como Francisco Teixeira da Mota já explicou, com uma competência que não tenho, nos termos do art.º 277 do Código do Processo Penal (CPP) só há duas formas de arquivar um inquérito: concluir que não houve crime ou que o arguido não praticou o crime (n.º 1) ou concluir que os indícios recolhidos não foram suficientes para formular uma acusação, mesmo subsistindo suspeitas fundadas (n.º 2 do mesmo artigo). Estamos pois perante um caso que se enquadra na segunda situação. E o que a procuradora fez foi explicar quais as suspeitas que existiam e como não foi possível nem prová-las, nem dissipá-las. Lendo o despacho de arquivamento todo – e não apenas as partes seleccionadas para suscitar o “estarrecimento” de Manuel Dias Loureiro – percebe-se que a procuradora poderia ter tido mais cuidado na sua redação, mas que isso nada muda ao que é substancial. E esse substancial já foi de resto bem exposto pelo Luís Rosa aqui no Observador, no trabalho jornalístico mais completo sobre o conteúdo da decisão da procuradora.

Basta ler este trabalho (até porque as 99 páginas do despacho de arquivamento são mais “duras de roer”) para perceber três coisas. A primeira é que os negócios que Manuel Dias Loureiro apresenta como cristalinos na sua entrevista ao prestimoso Diário de Notícias (é impagável ouvir a forma como descreve a máquina maravilhosa que descobriu em Porto Rico, esse paraíso da inovação tecnológica…) foram sempre operações que meteram contas na Suíça, passagens por offshores, intermediários duvidosos e labirínticas manobras destinadas a tornar quase impossível traçar o percurso do dinheiro. A segunda é que essas operações de um “homem de sucesso” acabaram com grandes prejuízos, nomeadamente para o BPN, ou seja, para todos nós que ainda estamos a pagar as facturas do BPN. E a terceira é que a investigação do Ministério Público não conseguiu seguir a pista de parte importante do dinheiro porque, na altura, as regras de cooperação com os bancos suíços ainda não eram as que são hoje.

O que nos leva a um último mas muito importante ponto: o de sabermos se a Justiça tem condições para investigar com sucesso casos de grande complexidade, que envolvem operações destinadas a esconder possíveis burlas, fugas ao fisco ou recebimento ilegítimo de comissões, casos suspeitos mas de muito difícil prova. Nos últimos anos, muito por via das necessidades de combate ao terrorismo e à forma como este faz circular o dinheiro, houve uma enorme evolução na cooperação internacional entre sistemas bancários, incluindo os sediados em offshores. Nalguns países, também por causa do combate ao terrorismo, também se foi mais longe num outro domínio, do da chamada “delação premiada”, isto é, o da realização de acordos que permitem perdoar parte dos crimes a quem colabora com a Justiça.

Este último ponto é escorregadio, mas um dia, se quisermos realmente combater a alta corrupção, vamos ter de abordá-lo. Neste tipo de crime nenhuma das partes – corruptor e corrompido – está interessado em que se conheça a verdade, pelo que é sempre mais difícil chegar lá. No entanto, premiar a delação pode ser também uma faca de dois gumes.

Seja lá como for, a verdade é que a leitura dos factos constantes do despacho de arquivamento não precisava das considerações da procuradora para que compreendêssemos que este é mais um daqueles casos em que fomos todos lesados (por via dos prejuízos do BPN) enquanto um homem “de sucesso” singrava na vida e acumulava uma fortuna. Um homem “de sucesso” e de estranhos hábitos, pois todos nos lembramos que, em sua casa, havia uma “parte esconsa do escritório” (palavras do próprio) a que apenas se acedia por uma porta numa casa de banho, compartimento esse onde, por acaso, até estavam guardados os dossiers com os documentos destes processos.

Tenham pois paciência. Um grupo de comunicação pode ter como presidente Proença de Carvalho, o advogado e amigo de Manuel Dias Loureiro, mas será que isso o obriga a erguer um altar a São Dias Loureiro?