Em Espanha, o novo rei terminou o seu discurso de investidura saudando em castelhano, basco, catalão e galego. O gesto não foi suficiente para que os líderes dos governos basco e catalão, Iñigo Urkullu e Artur Mas, presentes na cerimónia, aplaudissem o novo monarca: os seus braços imóveis impressionavam tanto ou ainda mais que a longa ovação prestada a Felipe VI pelos outros governantes, deputados e dirigentes que assistiam à cerimónia.
Artur Mas prepara um referendo independentista na Catalunha e Urkullu faz contas aos resultados que uma tal iniciativa poderia ter no País Basco e também às reservas de gás de xisto aí existentes e que, a serem exploradas, farão do rico País Basco ainda mais rico, o que quer dizer mais nacionalista pois em Espanha os nacionalismos têm uma forte componente de proteccionismo económico.
Como de costume nos actos solenes, o hino de Espanha foi tocado mas não cantado porque os espanhóis não se põem de acordo no que à respectiva letra respeita – porque não é laica, porque tem referências bélicas, porque pode ser interpretada como franquista ou qualquer outra coisa acabada em “ista”… E portanto alguns mexem os lábios e os outros nem isso.
Depois, naturalmente, os mesmos espanhóis escrevem parágrafos emocionados sobre o fervor patriótico dos brasileiros que apesar de a FIFA ter imposto versões abreviadas dos hinos no Mundial fizeram questão de, mesmo sem música, cantar até ao último todos os versos do seu muito bélico, nacionalista e religioso hino que, em cima de tudo isso, é gigantesco e tem expressões maravilhosas como “raios fúlgidos”.
Em França, o sonho da multiculturalidade transformou-se num pesadelo para patrões, trabalhadores, empresas, vizinhos… Casos como os dos candidatos à habitação social que apresentam queixa por serem identificados etnicamente mas que depois também se queixam por os mesmos serviços não promoverem a diversidade étnica ou as mulheres que nunca usaram lenço na vida mas que na hora de se despedirem resolvem passar a usá-lo para depois alegarem despedimento por discriminação, como sucedeu na creche Baby Loup, confrontam quotidianamente a França com a imagem de um país a braços com uma crise muito mais profunda que a económica.
Aliás, não fosse a proverbial desatenção à realidade francesa e já teria sido notícia que naquele país a progressão das equipas neste mundial não é seguida como nos outros locais do mundo pois a possibilidade de a França e a Argélia terem de se confrontar no Brasil leva a que em França se tema que esse jogo, a ter lugar e independentemente do seu resultado, seja o pretexto para uma batalha campal em Paris, Lyon, Grenoble…
Para que se perceba o ponto a que se chegou, após o final o jogo Argélia-Rússia foram queimados só em Lyon 28 automóveis e para o Argélia-Alemanha estão a ser tomadas medidas especiais de segurança tanto mais que alguns agrupamentos nacionalistas que se destacaram nas manifestações de contestação à reforma das pensões surgem agora com apelos a concentrações que apresentam como desfiles anti-distúrbios.
Poderia prosseguir na enumeração desta vaga de tribalização na Europa mas prefiro mudar de cenário. Passemos para os corredores com sinaléctica politicamente correcta das instituições europeias. Ali não há vestígios de tabaco, nem de bactérias no ar condicionado. Não há sexos mas sim género. Ali só há directivas, regulamentos e tratados. O azul predomina. Mas o reverso desse mundo azul-perfeito é essa rua cheia de gente gritando slogans xenófobos e violentos. Porque esse mundo azul-perfeito cujo centro virtuoso está num Parlamento Europeu, qual superestrutura asséptica acima das nacionalidades, tem crescido à custa do apagamento dos estados.
Em muitos dos estados europeus o serviço militar obrigatório desapareceu, alguns não têm hino, outros, como era o nosso caso até Scolari aqui ter aterrado, tinham medo de pegar na sua bandeira. Para quase todos eles a História é uma sucessão de factos inconvenientes que há que modelar. Aos seus povos os governantes europeus só se sentem à vontade para falar de dinheiro, ou melhor dizendo da falta dele. Todo o restante espaço ficou por conta das tribos, sejam elas nacionalistas, fascistas, radicais de esquerda ou simplesmente bárbaras, no sentido romano do termo, como acontece com esses grupos provenientes que puseram Londres a ferro e fogo há algum tempo e que em França fazem lei nos bairros piedosamente designados como sensíveis.
Essa Europa, cujas élites nos últimos anos deixaram de ver na construção europeia uma associação cautelosamente negociada entre estados e nações fortes para transformarem essa construção europeia numa caminhada para um admirável mundo novo europeu, onde os símbolos e as funções dos pretéritos estados perdem relevância, essa Europa, repito, tornou-se como sempre acontece quando os estados enfraquecem, num território de tribos.
E é essa Europa que ganhou no último Conselho Europeu, quando os dirigentes ali presentes indicaram Jean-Claude Juncker para presidente da Comissão. Ou seja, os chefes de Governo ao aceitarem que o próximo líder da Comissão fosse o indicado pelo Parlamento Europeu pactuaram com a revisão não oficial do Tratado de Lisboa, tratado esse que estabelecia que o presidente da Comissão seria escolhido pelos chefes de Governo presentes no Conselho Europeu e posteriormente votado no PE. No território das tribos isto chama-se golpada. No mundo azul-perfeito da eurocracia chama-se evolução.
Pode parecer irrelevante que no meio das complicadas arquitecturas europeias o presidente da Comissão seja escolhido pelos chefes de Governo presentes no Conselho Europeu ou indicado pelo Parlamento Europeu. Nada mais falso. Em primeiro lugar porque o respeito pelo funcionamento das instituições – que tão irritante pode parecer neste momento – é precisamente aquilo que nos distingue das tribos e que amanhã nos salvará doutras golpadas. Aliás os líderes que aceitaram este desrespeito pelo Tratado de Lisboa, a começar pelos populares que agora embandeiraram em arco com esta nomeação de um dos seus para presidente da Comissão, serão os primeiros a sofrer as consequências deste atropelo ao estabelecido.
Em segundo lugar porque é de actos como este, em que, sem que isso seja explicado aos povos, os Estados vão perdendo protagonismo, que se vai construindo a implosão europeia. Ignorando os avisos que chegaram com o desastre dos referendos à Constituição Europeia, a eurocracia aposta agora nos golpes palacianos. Ou, futebolisticamente falando, nas vitórias de secretaria. As tribos agradecem. Os outros, aqueles que viram na construção europeia um espaço de liberdade e de afirmação para países com uma matriz cultural, religiosa e histórica comuns, esses resta-lhes esperar que os prosélitos não destruam por dentro aquela que é a obra mais importante da Europa do pós-guerra.
Uma comunidade sobre a qual e parafraseando o hino brasileiro “o sol da Liberdade, em raios fúlgidos/ Brilhou no céu”.