O país está complicado. As armas roubadas do paiol de Tancos não são um perigo real, garantiu-nos António Costa. Estão, graças a Deus, em mau estado, não serviam para nada. Conclusão: os assaltantes acabaram por fazer um favor ao exército, poupando o dinheiro que custaria ao Estado a sua remoção legal. Tentando limpar uma nódoa, Costa alastra-a com método e precisão. É como a história dos dois miúdos que deixam cair no chão envernizado uns pingos de uma lata de tinta preta. Tentam limpá-los, mas só conseguem sujar o chão ainda mais.A partir de certa altura, só há uma solução: pintar o chão todo de preto. Pelo menos tudo fica uniforme. Costa vai obviamente por aí. É dar-lhe só mais algum tempo.

O mundo está complicado. É como se houvesse uma sucessão de movimentos de atracção e de repulsão. Por uns tempos, estamos todos unidos, cada vez mais próximos uns dos outros. Reina a homogeneidade. Depois, vem a separação, o triunfo da heterogeneidade. Cada um vai para o seu lado e dá a sensação que não é só a homogeneidade que é perdida como até a natural afinidade que nos liga uns aos outros. Movimentos desses viram-se na União Europeia e no célebre “consenso” relativo ao chamado “aquecimento global”. Uma coisa e outra, de resto, têm traços comuns fortes. Convém lembrar que a luta contra as alterações climáticas teve, desde a sua origem, um pano de fundo que apontava para uma governação mundial. Mas as sociedades humanas não suportam tanta identidade, tal como não vivem bem com diferenças absolutas. Sempre foi assim.

Bom, é provável que sempre tenha sido assim. Mas é verdade que quando se começa, quase inconscientemente, a produzir uma filosofia espontânea da história, baseada neste caso nos movimentos de atracção e de repulsão, apanha-se um susto. Só há duas soluções. Ou se desenvolvem todas as consequências do princípio teórico original e se caminha para um vasto fresco da experiência humana no seu conjunto, o que supõe uma confiança inexcedível nas capacidades do nosso espírito, ou, mais prudentemente, perguntamo-nos se não andamos a precisar de férias. Obviamente, a segunda hipótese é, para o comum dos mortais, a mais sensata. E foi, é claro, a que adoptei.

Eu e a minha mulher descobrimos uma casinha perto de uma praia onde eu costumava passar férias com os meus pais nos muito longínquos anos sessenta do século passado, a Foz do Neiva, e alugámo-la pelo mês de Julho inteiro. Um mês inteiro, disse bem. Confesso que não me lembro se alguma vez isto me aconteceu, mas a verdade é que, apesar de umas ocasionais vindas ao Porto por razões de trabalho ou pessoais, a coisa supõe uma confiança no tempo de que eu já não me julgava capaz. Um mês de férias! O tempo que se imagina à frente ao nosso dispor… O luxo de se poder não ir um dia à praia porque se sabe que o dia seguinte está ali, no mesmo sítio, à hora que quisermos… As horas, como dizia o outro, já não de números vestidas… Como aproximação à felicidade não está mal.

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A magnífica Auto Viação do Minho ajuda-nos imenso, transportando-nos praticamente de porta a porta. E permite, além disso, reflectir sobre o terror urbanístico de Portugal. Do Porto a Esposende não há praticamente pedaço algum que se salve. Casas minúsculas com uma corredor gigantesco no jardim, que mais parece a passadeira de Cannes. Casas com piscina colada à estrada, não vá ela passar desapercebida a vizinhos e passeantes. E por aí adiante. Portugal não é certamente a França, onde não há praticamente terrinha que não seja linda de morrer. Um dos prazeres de ver a Volta à França (força, Chris Froome!) é podermo-nos maravilhar todos os anos com isso. Mas, revisitando uma contenda antiga, a verdade é que as pessoas vivem melhor do que viviam, e se a fealdade é o preço a pagar por isso, paciência. (Simplifico, é fácil de ver, uma questão complicada.)

Há, de resto, momentos hilariantes na viagem. Em S. Bartolomeu do Mar, colado ao muro de um cemitério à beira da estrada, o PS resolveu colocar um imenso cartaz, que tem talvez o dedo de Ascenso Simões, o homem que terá contribuído para que Costa perdesse as eleições, com umas letras garrafais que dizem: “Eu quero ajudar a mudar”. E os companheiros de viagem também podem prestar serviços. No outro dia fui acordado, pelas bandas da Póvoa de Varzim, pelos berros de um senhor que gritava à mulher: “Estou calmo, pá!” (não foi “pá”, de facto, que ele disse). E ela, muito baixinho, com todo o saber de uma vida verosimilmente dedicada à tortura do marido: “Nunca foste calmo na vida, porque é que haverias de ser agora?”.

E há a Foz do Neiva propriamente dita. A praia, com pouca gente. E o rio. Por detrás, as dunas e o mar. À frente, na outra margem, os extensos campos de milho, depois, à distância, as casas e a seguir os montes. Um silêncio quase absoluto, apenas interrompido pelo ocasional “pluf” dos saltos das tainhas. Eu e a Inês podíamos passar ali uma eternidade.

Costa, muito longe, pode bem continuar a espalhar a mancha. E os falantes do mundo que continuem a pronunciar piedades e agressividades, às vezes quase indistinguíveis umas das outras. Nós temos isto, que é quase tudo. E livros, como o segundo volume das aventuras do amigo Robert Merivel, de uma velha conhecida, Rose Tremain. Não quero – não queremos – mais nada.