As notícias são tantas que já ninguém parece ficar incomodado. Mal. No dia em que nos deixamos de incomodar, deixamos de viver.
E, no caso do Grupo Espírito Santo houve uma dessas notícias que quase passou despercebida – e não devia. Compreende-se: entre as revelações sobre a forma como a PT arriscou 900 milhões em empréstimos de curto prazo a um grupo a que a ligam laços accionistas, até à notícia sobre as circunstâncias em que Ricardo Salgado comprou dois milhões de acções da EDP na altura da privatização, há muito por onde escolher.
Escolhi outra. A informação de que uma parte da solução para as dificuldades de financiamento do Grupo Espírito Santo pode chegar da Venezuela. Por via da sua companhia petrolífera, que também funciona como fundo soberano. Falta dinheiro – falta muito, muito dinheiro – e numa família de banqueiros é-se banqueiro, e por isso não se espera que alguém olhe à cor do dinheiro. Só que convém olharmos.
Nos últimos anos tem sido quase uma rotina: quando falta dinheiro, olha-se para o regime duvidoso mais à mão. Por regra tem-se começado por olhar para Angola – até porque Angola também olha muito para Portugal.
Só para se ter uma ideia, recordemos que a Sonangol, a empresa de petróleos do regime, é o maior accionista do BCP. Isabel dos Santos, a bilionária filha do Presidente, é accionista de referência do BPI. O BPN, ou o que restava dele, foi comprado pelo BIC, este de maioria angolana e dirigido pelo ex-ministro Mira Amaral.
Isto é apenas o aperitivo. Quando os bancos portugueses vão para Angola são obrigados a associar-se a sócios locais. Foi isso que fizeram o BPI, o BCP, naturalmente o BES, também a Caixa-Geral de Depósitos. Até o Santander (em Angola o banco chama-se Caixa Totta…). E quando os angolanos vêm para Portugal têm o olho em muitos outros negócios, com uma queda especial para a comunicação social. Hoje por hoje, há capital angolano no Sol e no jornal I, no Diário de Notícias, no Jornal de Notícias e na TSF, no grupo Cofina (Correio da Manhã e Jornal de Negócios) e onde se calhar ainda nem se imagina.
Mas este texto não é sobre a forma como a oligarquia angolana tem vindo a tornar-se dona de um parte de Portugal – é antes sobre como a situação de dependência e fraqueza em que nos colocámos tem aberto as portas às mais espúrias alianças. Uma delas foi a abertura do Banif – um banco aflito onde o Estado português teve de intervir – a uma entrada de capital da Guiné Equatorial, um movimento que não podemos deixar de associar ao processo de entrada na CPLP desse país submetido a uma ditadura brutal.
Não tenhamos muitas dúvidas. A hipótese de a Venezuela vir agora em socorro do grupo Espírito Santo é apenas mais um episódio num processo que já teve outros momentos pouco nobres, como as visitas do anterior primeiro-ministro a países como a Líbia no tempo de Kadafi em busca dos financiamentos que o mercado nos negava. Foi também nessa época que uma parte de Portugal, com Sócrates de novo à frente e o Grupo Espírito Santo de braço dado, fazia do regime autoritário de Caracas o seu porto de abrigo, tratando-o com amizade e cumplicidade – e esperando reciprocidade.
Há um lado de “casa de meninas” nestas relações, há sobretudo sinais de muita aflição provocada por – vou ser gentil – mais olhos do que barriga. Podia responsabilizar apenas os empresários que – nem sempre, nem todos – se colocaram numa posição de ficarem dependentes de capitais que não procuram investimentos rentáveis, procuram sobretudo poder, influência e vassalagem, mas isso seria curto. Primeiro, porque é isso que, em muitos destes casos, distingue os capitais que afluíram a Portugal e a essas grandes empresas dos capitais que, no mercado, em condições concorrenciais, se negaram a tomar as dívidas que procuravam financiamento. Depois porque, infelizmente, houve governos – talvez todos os governos – que estimularam estas relações, e num caso pelo menos deram o exemplo.
Por outro lado questiono-me, inquieto, se as condições em que esses capitais circulam pela nossa economia e pelo sistema financeiro cumprirão as mesmas normas de exigência das economias desenvolvidas.
Não é pois possível ficar indiferente, e muito menos aliviado, com a notícia de que alguém na Venezuela está a dar uma mão ao Grupo Espírito Santo. Uma coisa é evitar um colapso que pode custar caro ao país – outra coisa é aceitar que qualquer dinheiro serve para manter não apenas empresas, mas também redes de poder que se condenaram a só mesmas. Precisamente por quererem ter todo o poder, ontem, hoje e amanhã.
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