É como nas cebolas: por cada camada que se retire, há mais uma camada que surge. Todo o processo da Caixa Geral de Depósitos é feito de uma sucessão de disfarces e cinismos que nos recordam o pior do jogo político, ao estilo de uma “House of Cards” doméstica, onde já vimos que vale tudo.

O ponto em que hoje se encontra o debate é lamentável. E quem o fez descer a esse nível mais rasteiro foi o Presidente da República, em concubinato com o Governo. Disse o primeiro, corroborou o segundo: uma mentira só é mentira se houver uma assinatura. O que significa que, para os mais altos representantes do Estado português, a palavra dada não tem valor. Só vale a palavra escrita. Falta saber se, no fim do dia, ainda vão exigir reconhecimento presencial num notário.

Se logo na altura em que o caso se tornou público era evidente a hipocrisia e a manha patentes em todo o processo, agora ultrapassaram-se todos os limites da decência. Com a gravidade adicional de ser o Presidente da República “himself” a ultrapassar esses limites.

Mas recapitulemos o que se passou, pois já não há muitas dúvidas sobre como decorreu o processo do convite a António Domingues para presidir à administração da Caixa Geral de Depósitos:

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

1. António Domingues, que planeava reformar-se do BPI no final de 2016, aceitou o desafio de liderar a CGD colocando um conjunto de condições. Entre essas condições contava-se, formuladas logo em Março do ano passado, isentar a equipa de gestão das regras do gestor público, quer no que respeita aos limites colocados aos vencimentos dos gestores, quer sobretudo no que se refere à obrigatoriedade de depósito da declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional.

2. A equipa do Ministério das Finanças – Mourinho Félix e Mário Centeno – aceitaram essas condições e agiram em conformidade. Como sabemos isso? Sabemos porque essas condições foram colocadas por escrito, por António Domingues, tal como consta dos mails já conhecidos. Sabemos porque não existe nenhum mail dos responsáveis do Ministério a contrariar os termos da combinação e porque Domingues aceitou o convite. Sabemos também porque, depois desta combinação, os advogados contratados por António Domingues começaram a trabalhar nas alterações legislativas, que fizeram seguir para o Ministério.

3. Desde o primeiro momento que o Governo tinha consciência dos problemas que esta alteração legislativa levantava, nomeadamente ao contrariar o disposto na lei de 1983. Nem se imagina que outra coisa pudesse suceder: o primeiro-ministro é um jurista, o Presidente da República até era ministro dos Assuntos Parlamentares na altura em que essa lei foi aprovada. No entanto alterar a lei de 1983 exigia que o diploma fosse ao Parlamento, e o Governo sabia que isso era politicamente delicado. Optou-se por isso por um decreto-lei, a ver se a coisa passava. E actuou-se com manha, adiando um mês a publicação do Diário da República desse decreto-lei para que tal só acontecesse no preciso dia em que a Assembleia entrava de férias.

4. O Presidente da República nunca esteve de acordo com esta solução, mas antes do Verão, quando o plano de recapitalização ainda não tinha obtido a primeira indicação de aprovação em Bruxelas, aceitou engolir o sapo. Em Outubro, já com a administração em funções e o plano pré-aprovado pelas autoridades europeias, liberta, via Marques Mendes, a bomba: o decreto-lei afinal não previa a obrigatoriedade da entrega da declaração de rendimentos. Como se de um anjinho se tratasse, Mendes interrogava-se melosamente: “Ou é um lapso, admito que seja, que tem de ser corrigido rapidamente, ou foi de propósito e é muito mais grave”.

5. Na terça-feira seguinte, ingenuamente (ou credulamente?), Mourinho Félix começou por esclarecer que se tratava de “uma solução combinada” com a Direção Geral da Concorrência da Comissão Europeia e que “os gestores da CGD terão obrigações de escrutínio de idoneidade maiores do que os políticos ou os titulares de altos cargos públicos”, mas sem acesso do público em geral às suas declarações de rendimentos. O próprio Ministério das Finanças começaria por, numa nota, reafirmar essa interpretação, para corrigir o tiro horas depois. Rapidamente o spin governamental tratou de virar o bico ao prego e construir uma outra narrativa. A que tem vigorado desde então.

6. O cinismo de algumas declarações públicas atingiram então níveis capazes de tirar a respiração mesmo aos argumentistas do “House of Cards”. António Costa, que tinha reunido a 2 de Junho com Domingues antes de este avançar com mais convites, que chegou a interromper um conselho de ministros para lhe dar luz verde, e que não podia senão estar por dentro das condições colocadas pelo gestor, tratou de tirar o corpo da polémica com a declaração mais sibilina de todo este processo: “Eu entreguei a minha declaração…” Sim, e depois? Não era isso que estávamos a discutir. Mas como facada nas costas não ficou nada mal. Lembra a cena, logo no início de “House of Cards” em que Frank Underwood esgana um cão que tinha sido atropelado, concluindo que, em política, não se pode ter hesitações ou piedade. António Costa não diria melhor.

7. Devo dizer, contudo, que Marcelo Rebelo de Sousa conseguiu ir ainda mais longe. Depois de, em Junho, ter estendido o tapete a António Domingues ao assinar o decreto-lei que o Governo lhe enviou, depois de em Outubro lhe ter tirado o tapete por interposto Marques Mendes, faz o que nenhum Presidente antes dele fizera: um comunicado que é, ao mesmo tempo, um parecer jurídico à atenção do Tribunal Constitucional e uma sugestão ao Parlamento para que legisle em conformidade.

Tudo isto, ou quase, já se sabia antes de, na Assembleia da República, se ter aprovado a lei que tornou claro que os gestores da Caixa teriam mesmo de entregar a sua declaração de rendimentos. E de estes se terem demitido. O que agora vamos conhecendo são novos pormenores e a certeza de que Mário Centeno mentiu quando disse aos deputados que nada tinha combinado com António Domingues. Não só combinou, como isso decorre dos emails já conhecidos, nos quais se chega ao detalhe de perguntar ao gabinete de advogados que estava a trabalhar com o gestor qual a melhor versão para o texto que estava a ser preparado para o decreto lei. E ainda foi mais longe, pois também combinou a melhor estratégia para fazer passar as alterações, algo que ficará claro quando se conhecer o conteúdo dos SMS.

O Presidente terá perguntado ao primeiro-ministro se havia algum papel assinado por Mário Centeno, e quando lhe disseram que não, atravessou-se pelo ministro. Talvez não considere “papel assinado” trocas de SMS. Talvez não considere que o facto de “inexistirem” mails de resposta à listagem das condições colocadas por António Domingues representa, implicitamente a sua aceitação. Talvez também ache que a palavra do ministro vale tanto como uma vichyssoise, por muito estranho que isso possa parecer.

O secretário de Estado combinou, o ministro fechou o acordo, o primeiro-ministro deu o aval e a garantia, o Presidente colocou a sua assinatura num decreto-lei sem desconhecer as intenções de quem o redigira. Depois o Presidente puxou o tapete, o primeiro-ministro fez uma finta e tirou o corpo fora, o ministro atrapalhou-se e mentiu no Parlamento e o secretário de Estado meteu os pés pelas mãos. Todos, com a maior das friezas e requintes de cinismo, trataram de deixar todo o ónus nos gestores que tinham convidado para a Caixa e com os quais se tinham comprometido.

Há quem aprecie esta forma de fazer política. Eu prefiro ficar-me pela ficção do “House of Cards”.

PS. Foi penoso assistir à conferência de imprensa de Mário Centeno, onde procurou demonstrar o indemonstrável. Em nenhum momento explicou como foi possível chegar a acordo com António Domingues sem cumprir a sua principal exigência, a de que não haveria “obrigações de publicidade, transparência ou de declaração” dos rendimentos, como está escrito, preto no branco, nos mails trocados com o Ministério. Foi também penoso repetir a desculpa invocada para o atraso na publicação do decreto-lei, referindo as negociações em curso com Bruxelas. Uma lei já pronta e assinada pelo Presidente à espera de “retoques”? Não faz sentido. Uma lei à espera do fim das negociações nas instâncias europeias publicada no fim de Julho quando estas só acabaram no fim de Agosto? Não faz sentido. Porque não falam com verdade, ao menos por uma vez?