A tara das gravatas. Não falha: mal a esquerda aparece com um despreparado candidato a caudilho começa o engraçadismo sobre a sua forma de vestir, os seus gostos ou outras idiossincrasias. No caso do actual governo grego é a mania das gravatas ou mais propriamente a mania de não as usar. Em Portugal nos idos de 75 era o sono. Não havia jornalista, activista ou adepto do turismo revolucionário que após fotografar umas ceifeiras numa cooperativa no Alentejo, uma empresa ocupada na margem sul, ver duas manifestações em Lisboa e falar com três militares não manifestasse uma profunda admiração sobre os homens sem sono que dirigiam Portugal. Portugal era governado por homens sem sono e esse aparente detalhe, por estranho que possa parecer, fazia toda a diferença face aos rotineiros ensonados que governavam a restante Europa.
Aquele estado de reunião permanente do Conselho de Ministros e do Conselho da Revolução, sem esquecer as assembleias do MFA, era visto como um frenesi revolucionário a que as fardas e o cabelo comprido dos militares emprestavam um negligé viril que ficava particularmente bem nas fotografias e filmagens a preto e branco. Quanto mais instalados nas suas muito capitalistas e confortáveis vidas, mais estes ilustres visitantes achavam interessante esta insone experiência revolucionária, logo ali a poucas horas de avião de qualquer descansada e bem dormida capital burguesa.
Que os homens sem sono aprovassem em Portugal a mais desvairada e contraditória legislação, que muito do decidido fosse logo esquecido e ultrapassado por outras decisões, que se aprovassem medidas atentatórias dos direitos mais básicos, como o Tribunal Militar Revolucionário e o confisco dos bens, não lhes causava inquietação de maior. O que salientavam como extraordinária mais-valia deste nosso país era o facto de sermos governados por homens sem sono.
Desfeito o PREC, os governantes portugueses para seu e nosso bem voltaram a dormir como os demais. E a imaginária revolucionária deslocalizou-se para paragens mais remotas: tivemos o carapuço do comandante Marcos no México, os inevitáveis lenços palestinianos, o (que Camões e Dom Afonso de Albuquerque me perdoem a apropriação da palavra!) “terribil” fato de treino de Chávez e, numa aparente contradição, mas só aparente, porque nesta matéria o que conta é épater le bourgeois, o deslumbramento dos socialistas portugueses pela pose dum seu líder que comprava fatos numa loja de Rodeo Drive.
Em 2015 muitos cidadãos europeus deslocam as suas nunca desfeitas ilusões revolucionárias para a Grécia. E como não há revolução sem o culto das idiossincrasias dos revolucionários estamos agora na questão das gravatas. Como se a questão fosse Tsipras ou Varoufakis usarem ou não gravata. (Já agora parabéns a Renzi que aproveitou o encontro com Tsipras para fazer publicidade a um dos produtos símbolo do sucesso da marca Itália: as gravatas). O problema do governo grego é que a única ideia que tem para governar a Grécia é pedir, mendigar, exigir, reivindicar e fazer palhaçadas de modo a sacar mais dinheiro aos outros. As gravatas, ou no caso concreto a ausência delas, é apenas um acessório da performance da pedincha disfarçada de bravata revolucionária. Pelo jeito com que a coisa vai os governantes gregos acabarão em Moscovo. Mas tanto quanto se sabe, na hora de cobrar as contrapartidas o Kremlin não costuma ser muito sensível ao vestuário dos seus tutelados. (Alguns aliás nunca mais precisaram de roupa na vida.) Talvez se Varoufakis for de túnica e sandálias como os pretéritos gregos seja bem-sucedido. Tem é de esperar pelo Verão.
O síndroma da mãe do Dantas. “Nós sentimos que a política que é hoje dominante na Europa está a matar a confiança dos nossos cidadãos pelo projeto europeu” afirmou António Costa. Não há dia em que os dirigentes do PS português, do PSOE espanhol, a par de outros líderes do socialismo democrático europeu não afiancem que a austeridade está matar, que já não há líderes e que estamos à beira do caos. A austeridade está de facto a matar. Mas não é o projecto europeu mas sim uma ideologia. Mais precisamente a austeridade está a matar o socialismo democrático cujos partidos se arriscam a desaparecer do mapa eleitoral na Grécia, Espanha e França. E em boa parte isto acontece porque os líderes socialistas nos momentos difíceis ficam atacados pelo síndroma da mãe do Dantas.
Júlio Dantas que a maior parte lembrará por causa do manifesto que Almada lhe dedicou (por sinal, Júlio Dantas era uma figura bem mais complexa e corajosa do que aquilo que Almada sugere, mas esse assunto ficará para outra crónica). Ora entre os traços de personalidade de Júlio Dantas contava-se a absoluta desmesura com que vivia os factos da sua vida. Era um dramático, como então se dizia, para não entrar em maiores e à época embaraçosos detalhes.
Este traço de personalidade do nosso Dantas esteve à beira de deitar por terra um acontecimento em que várias personalidades portuguesas tinham posto muitas das suas maiores expectativas e vaidades: uma embaixada cultural que ia ao Brasil participar nas cerimónias evocativas do descobrimento daquele território (agora deve dizer-se achamento mas à época achar era próprio dos tolos). Ter conseguido constituir aquela “embaixada cultural” custara laboriosas negociações com Salazar que, para lá das proverbiais questões de dinheiro, temia a forma festiva para não dizer carnavalesca como no “país irmão” se tratavam os venerandos factos da História. No limite e sob o espectro de, por ausência de Portugal, Pedro Álvares Cabral acabar a ser representado com plumas e outros luzentes adereços, lá seguiu a embaixada cultural para o Brasil. Presidia-a Júlio Dantas. Ora a meio da viagem chegou a informação de que tinha morrido a mãe de Júlio Dantas.
Foram imensas a dor e a consternação que se abateram sobre o extremoso filho. Mas não só: a partir do momento em que a bordo se soube do passamento da senhora, Júlio Dantas comportou-se como se todos os membros da embaixada, a tripulação do navio e o próprio oceano estivessem de luto pela sua finada mãe. Mas mesmo assim não lhe chegava. Para o Brasil foi comunicado que falecera a mãe do dr. Júlio Dantas. Solícitos, os brasileiros logo acharam que também eles se deviam associar ao luto que naquela fase já não era do dr. Júlio Dantas mas de toda a delegação portuguesa. E assim, entre a exorbitação de Júlio Dantas e a atracção dos brasileiros pela espectacularidade, seja ela da vida ou da morte, as manifestações de dó pela morte da mãe do Dantas iam num crescendo arrebatador.
A bordo, os portugueses já se viam afastados de todas as cerimónias (as tais para as quais tinham andado durante meses a preparar vénias e discursos!) e a serem recebidos não como convidados de honra nas comemorações da descoberta do Brasil mas sim para naquela terra bendita chorarem a mãe do Dantas. E é quando os brasileiros, empolgados com a dor do Dantas, já comunicam para bordo a sua intenção de receber os portugueses com missas solenes e Te Deum que na embaixada portuguesa alguém declara que quem morrera fora a mãe do Dantas não a mãe da Pátria. Logo o Dantas que fizesse o seu luto enquanto a embaixada iria tratar daquilo a que se propunha: comemorar a descoberta do Brasil.
Os socialistas estão exactamente como o Dantas naquele barco a caminho do Brasil: acham que a Europa está à beira do fim, que os europeus deambulam sem líderes nem rota e que há que refundar tudo de novo. Ora o que os eleitores lhes estão a dizer é que quem está a morrer não são as restantes ideologias mas sim o socialismo democrático. Só que ao contrário da mãe do Dantas que morreu de causas naturais, o socialismo democrático está a morrer por culpa dos seus líderes. Estes continuam a fazer programas e discursos como se estivéssemos no tempo em que a diferenciação dos partidos se fazia pelas diferentes formas como se propunham distribuir a riqueza. Impossibilitados de recorrer aos truques e à demagogia da esquerda e da direita radicais, os socialistas acabam por falta de propostas adequadas ao tempo em que vivemos a não capitalizar o descontentamento dos eleitores do centro: Passos, Rajoy e até o grego Samaras perdem eleitores mas mantêm os seus partidos como alternativas de poder.
À força de quererem identificar o seu problema ideológico com o fim das ideologias, obstinados em falar do tempo passado em que gostaram de viver e foram líderes, os socialistas ficaram sem discurso sobre os tempos em que vivemos. E deixaram não só que esse espaço fosse ocupado pelos radicais como que os defensores da austeridade aspirem a ganhar as eleições ou a não as perder por muito.
Ou os dirigentes socialistas percebem que quem está com problemas é o socialismo democrático e actualizam o seu discurso, ou arriscam-se a que muitos eleitores lhes deem a correr os pêsames e os deixem sós na sua missa por alma do passado antes de irem participar na festa dos outros.
Post-scriptum: Teriam gostado de o conhecer
Quando escrever este texto, passei os olhos pelas últimas notícias. Foi então que li “Morreu o cientista político Manuel de Lucena”. Lembrei-me quase imediatamente da última vez que falámos: “Sou um pagador de textos” disse-me após enumerar tudo o que tinha entre mãos e que não teria tempo para terminar mesmo que já escrevesse em computador ou pelo menos à máquina e vivesse mais meio século.
Contactei tardia e brevemente com o Manuel Lucena. Reconheço-o no retrato que dele fazem aqueles que definia como seus amigos e de quem gostava de falar aos conhecidos mais fugazes, como era o meu caso. Era de facto livre pelo seu desprendimento material – “O Manuel é a única pessoa não pressionável que conheço: não quer cargos, não precisa de mais do que tem…” dizia-me alguém a quem eu confessava o meu desespero por um texto que o Manuel ficara de mandar e que ainda nem sequer fora para a dactilógrafa. (Pedir-lhe um artigo implicava estar preparado para receber muito atrasado um texto várias vezes maior que o combinado e também contactar uma determinada dactilógrafa que ele garantia decifrar-lhe a letra). Mas o Manuel Lucena era também livre porque não se deixava agarrar pelo azedume. Era desarmante na sua sinceridade e desconcertante na forma com se expunha, indiferente aos julgamentos sociais.
Mas aquilo que me fez escrever sobre o Manuel Lucena não foi tanto descrevê-lo (outros o conheceram muito melhor) mas sim algo que a sua morte me tornou ainda mais evidente: não há tempo para ouvir. Tudo tem de ser resumido, tudo tem de ter um soundbite, tudo tem de passar por um antagonismo. Não há mediaticamente falando espaço para um discurso como o do Manuel Lucena que vale pela sua inteligência e singularidade. No meio de tanta comunicação perdeu-se a capacidade de conversar. Tenho pena que o Manuel Lucena tenha morrido mas a pena que aqui quero deixar registada é a de que para muitos portugueses ele seja um desconhecido. Acreditem, teriam gostado de o conhecer e tal como aconteceu com quem se cruzou com ele ter-se-iam esquecido do tempo, do parquímetro e do telemóvel que não parava de chamar, enquanto o ouviam num raciocínio que o podia levar de Santa Teresa de Ávila aos grémios ou a África.