Ministério Público nada fez: Mulher morreu 37 dias depois da queixa
MP não fez nada. Mulher morreu 37 dias depois de ter apresentado queixa
Ministério Público não fez nada para evitar que esta mulher morresse
Foi este o tom dos títulos que esta semana deram conta do homicídio de uma mulher pelo marido no ano de 2015. Quem tivesse chegado por estes dias a Portugal e escutasse os foruns que as rádios dedicaram ao caso, visse televisão e lesse os jornais, suporia que neste país basta alguém apresentar uma queixa de agressão contra outrem para que de imediato o visado seja detido e afastado das suas vítimas.
Outra opinião teria o recém-chegado se falasse com quem já foi ameaçado, assaltado ou agredido. Caso isso acontecesse ficaria a saber que à excepção do abandono de animais que cartazes profusamente espalhados pelas esquadras garantem ser crime e da violência doméstica, em que os acusados são, mediaticamente falando, de imediato culpados e em que, com provas ou sem elas, se exigem condenações céleres e exemplares, toda a outra violência resulta de alegadas agressões praticadas por alegados agressores.
Às vítimas, inevitavelmente alegadas a não ser quando assassinadas, esperam-nas na justiça processos longos – caso as vítimas apresentem queixa, o que muitas não fazem por receio ou por acharem que não vale a pena. Já na comunicação social, sobretudo na dita de referência, sobram-lhes doses abundantes de sociologia que muito sagazmente desmontam a paranoia e a histeria securitárias que, explicam jornalistas e especialistas, grassa entre as alegadas vítimas, mesmo que as alegadas vítimas sejam, por exemplo, comerciantes cujos estabelecimentos já foram objecto de vários assaltos violentos dos quais além dos prejuízos materiais resultaram feridos e mortos entre clientes, proprietários e trabalhadores. Sobre as agressões aos trabalhadores convirá lembrar que a expressão “agressões aos trabalhadores”, usada e abusada por políticos, refere-se invariavelmente a salários, reposições e subsídios mas nunca às agressões que, por exemplo, sofrem os condutores de autocarros no Grande Porto e que até levaram à introdução de cabines blindadas em algumas carreiras ou aos assaltantes que em Queluz partiram o braço a uma farmacêutica. Destas agressões os sindicatos falam pouco e quando falam nunca referem os agressores mas sim questões laterais como os horários ou os salários.
Por vezes, os factos roçam o anedótico, como aconteceu com o homem que agrediu um agente da PSP no miradouro de Santa Catarina, em Outubro passado, que se veio a apurar ter 17 processos por agressão, cinco deles a polícias.
Indissociável do mundo da alegada agressão é o conceito do agressor “problemático” já devidamente “sinalizado pelas autoridades”. Assim o jovem do Barreiro que no ano passado já somava duas dezenas de queixas por agressão não é propriamente um agressor mas sim o membro de uma “família problemática” cujos problemas se traduzem em agressões. Igualmente problemático é o jovem “sinalizado pelas autoridades” que protagonizou vários assaltos com agressão em Mirandela. No fim as vítimas já não se distinguem dos agressores porque, dizem esses especialistas, “vítimas somos todos” e as primeiras de todas elas são naturalmente os agressores enquadráveis no universo dos problemáticos referenciados e sinalizados.
Obviamente das vítimas cujos agressores pertencem ao universo problemático espera-se que não se queixem, não falem de traumas e não dêem nas vistas. Se no meio de tanta problemática se colocarem questões étnicas então entra-se num universo tal de tabus que o melhor é nem referir o assunto, mesmo que o assunto em causa se tenha revestido de enorme violência, como aconteceu aproximadamente há um mês, em Muge, quando uma das vítimas de um assalto foi amarrada e regada com álcool.
Na verdade, à excepção da imprensa regional e do Correio da Manhã, a violência que acompanha muitos assaltos, nomeadamente em zonas rurais, não parece indignar os activistas nem suscitar particular interesse nas redacções. E contudo muitos destes assaltos visam os mais fracos, como são os idosos e as mulheres. Por exemplo, quem são as principais vítimas do chamado roubo por esticão? Ou mais propriamente entre as 4311 queixas de roubo por esticão registadas em 2016 quantas tiveram mulheres como vítimas?
Perante a indiferença face a este crime quase se acreditaria que ele não é praticado nem sofrido por ninguém mas sim que as malas e carteiras animadas de vida própria começam a ter uns estertores e se libertam das suas proprietárias. Na verdade não é assim e não são poucas as mulheres que acabam arrastadas e maltratadas quando lhes arrancam as carteiras. E também os brincos, fios e pulseiras que não por acaso ficam cada vez mais previdentemente guardados em casa. E as que são empurradas no recanto da entrada do prédio por um estranho a quem entregam a carteira na esperança de rapidamente se conseguirem refugiar em casa, donde têm cada vez mais medo de sair? E as que são seguidas e assaltadas após terem levantado dinheiro? (Só um acendrado amor pelos banqueiros em si mesmos e pelo sistema bancário no seu todo pode explicar a comoção vivida com qualquer assalto a banco ou explosão de caixa multibanco versus a plácida indiferença com que se reage aos assaltos aos clientes dos bancos, sobretudo se esses clientes forem velhos e pobres.)
Que impacto têm estas agressões na vida e na saúde de quem as sofre? Não há traumas? Não se fica com sequelas físicas? Não se perde qualidade de vida?
A mesma indiferença do frenético mundo activista, tão dado às questões sociais, se regista perante a violência que acontece nas escolas (chegou a ser identificado o grupo que em do ano passado invadiu e vandalizou uma escola no Lumiar?) e muito particularmente face ao calvário, no sentido sacrificial do termo, vivido por muitas mulheres durante os assaltos às suas casas.
Quem se interessou pela agonia de mulheres como Maria Augusta, de 83 anos, morta num assalto na Amadora ou por aquela tetraplégica que na Amorosa, em Viana do Castelo, pedia aos ladrões que a agrediam na cama donde não conseguia sair para a matarem?
Frequentemente estas mulheres são apenas a “idosa assaltada” em notícias breves em que apenas muda o local e a idade da vítima: “Uma mulher de 91 anos foi encontrada morta em casa, este domingo à tarde, na sequência de um assalto violento, em Fafe.”
… Exemplos não faltam. Durante anos aquilo a que hoje se chama violência doméstica foi menosprezada pela imprensa dita de referência. Eram os chamados crimes de faca e alguidar que, afiançavam esses antepassados dos actuais activistas que davam pelo nome de intelectuais comprometidos, não teriam lugar na sociedade sem classes, no caminho alternativo do terceiro mundo, no fim do capitalismo…
Nesse novo arranjo social a diferença entre homens e mulheres naturalmente desapareceria pelo que tratar da violência agora dita doméstica era então uma distracção do foco principal – a mudança global da sociedade – e já agora também uma crítica aos operários e camponeses para quem bater nas mulheres era por assim dizer um direito natural.
Décadas depois a violência contra as pessoas continua a ser um não assunto, excepção feita à violência doméstica. Ou, mais propriamente, à violência de homens contra mulheres num contexto de relações heterossexuais. (Sobre a violência nas relações homossexuais começa logo por ser difícil obter dados. Por exemplo no Relatório de Segurança Interna 2016 pouco mais se consegue saber sobre este fenómeno à excepção do facto de 3% a 4% de queixas de violência entre namorados terem sido apresentadas por casais do mesmo sexo).
Hoje a violência doméstica, ou mais precisamente uma parte dela, ganhou o estatuto de flagelo, chaga social e causa urgentíssima. Foi apadrinhada pelos activistas do costume. Ou seja tornou-se no assunto que os protagonistas habituais sinalizaram como instrumental na sua luta por mais poder. E assim, armados de zelos inquisitoriais, vasculham agora acordãos em busca de frases comprometedoras, pedem medidas excepcionais e formação para os agentes da justiça, traduzindo-se no caso “a formação” por sessões de agitação e propaganda. Ou, para usar a terminologia da secretária de Estado da Cidadania e Igualdade, Rosa Lopes Monteiro, vai-se “avançar numa “missão civilizacional” para mudar “culturas demasiado interiorizadas”.
Portanto, estamos conversados: as idosas continuarão a ser agredidas em assaltos que só interessam aos histéricos securitários. Já na violência entre casais sobretudo se forem heterossexuais ou há condenações rápidas ou os juízes arriscam-se a tornar-se no alvo da próxima fúria mediático-política. Por fim mas não por último, sendo o desempenho da Justiça nos casos de violência doméstica analisado pela Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica certamente que existem equipas de análise retrospectiva para os homicídios acontecidos noutros contextos. Seria importante conhecerem-se quer essas equipas quer as conclusões a que têm chegado.