“Olha aqueles espertos que trouxeram um bebé só para passar à frente dos outros; isto agora é só truques, se calhar nem é deles”. Foi debaixo deste e de outros comentários bem sonoros que fui atendido há dias, com a minha mulher, no Serviço de Finanças de Picoas, em Lisboa, acerca de uma situação que envolvia ambos. Chegámos antes do abrir da porta, integrámos a fila formada na rua, tirámos senha quando o relógio bateu as 9h da manhã e, tendo trazido a nossa filha por não termos com quem a deixar àquela hora, exercemos o direito à prioridade no atendimento. Tudo normal? Pelos vistos não, já que os insultos não tardaram. E, incontestados pelos restantes, vieram proferidos por quem menos se esperaria – uma senhora com idade para ser avó, elegantemente vestida e, tanto quanto é possível supor, com instrução acima da média.

Foi uma excepção? Nem por isso. Não subestimo a frustração inerente a uma deslocação às Finanças, onde se aguarda horas para enfrentar a cegueira da máquina fiscal. Mas asseguro que o episódio não destoou na substância de muitas outras situações vividas nos meus primeiros meses de paternidade: são raros os que abdicam do seu conforto, da sua prioridade ou dos seus hábitos por uma criança. Isso vê-se nos centros comerciais, onde jovens insuflados pelo ginásio recusam as escadas rolantes e não concedem passagem aos carrinhos de bebé nos elevadores – eles chegaram primeiro, eles usam primeiro. Isso encontra-se nas esplanadas onde, depois da difícil tarefa de encaixar o carrinho de bebé entre mesas e cadeiras, pedir ao vizinho do lado que não fume para cima da criança rebaixa-nos a hereges. Isso sente-se nos restaurantes (sobretudo no eixo da Baixa-Chiado), onde o choro de um bebé perturba a coolness e merece a incompreensão geral dos clientes. E tudo isso se alastra a praias, museus e jardins. As crianças são encantadoras? Sim, claro. No Facebook, em casa ou arrumadas no seu cantinho silencioso.

É oportuno sublinhar que isto se passa num Portugal que elegeu como causa nacional o combate à queda demográfica. Onde reina um consenso político quanto à necessidade de proporcionar melhores condições (financeiras, laborais, fiscais) a quem tem filhos. Onde, ainda recentemente, se assinalou com pompa uma ligeira subida na taxa de natalidade. Mas, também, no Portugal onde causas e consensos poucas vezes conseguem furar a esfera do abstracto e do imaterial. Afinal, a natalidade penetra indirectamente no debate público através dos assuntos económicos. Seja por via da chamada de atenção para o desequilíbrio da balança da Segurança Social ou por via da necessidade de afirmação da economia portuguesa – com mais nascimentos hoje, será amanhã mais fácil dinamizar a economia e tornar sustentável o Estado Social. E isso, para o dia-a-dia de cada um, tem tanto significado como as centenas de notícias sobre o défice orçamental: zero. Na teoria, há anos que todos se preocupam, mas na prática isso não impediu que tivéssemos de solicitar auxílio à troika.

O ponto que sobressai é que, na sociedade em geral, quando as metas da natalidade assentam um pé na realidade das ruas, os consensos nacionais estilhaçam-se. Todos concordam que o país precisa de mais crianças, mas poucos aceitam ceder um milímetro do seu bem-estar para as ter por perto. Nem sequer um lugar numa fila. A quem optou por ter filhos, os olhares públicos exigem que os assumam sem intromissões ou ruídos, para que nenhum gesto interfira com os outros à volta. O que, como se sabe, não é possível. Dizer, portanto, que as crianças estão abaixo de cão não é, aqui, um eufemismo – é que, em muitos sítios, tolera-se mesmo melhor um cão do que um bebé.

Ora, estas duas posições – a teórica de querer maior natalidade e a prática de não tolerar bebés – são obviamente incompatíveis. E, como acontece sempre, a prática tem-se imposto à teoria. Podemos, pois, escutar vários e plurais apelos à natalidade que, no concreto, a sombra permanecerá: querem-se mesmo mais bebés? Parece que não. A legislação e os partidos até podem defender que sim – e é fundamental que, na medida do possível, o proporcionem. Mas, nas ruas, não há lei que resista a esta realidade: a de uma cidadania intolerante a crianças.

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