Vendo o rápido desenvolvimento da política repressiva de Recep Erdogan e os métodos por ele aplicados, fica-se com a impressão de que o Presidente turco pretende realizar em poucos meses na Turquia o que o seu homólogo russo, Vladimir Putin, demorou longos anos a fazer na Rússia, e até a ultrapassá-lo em alguns campos: neutralizar a oposição parlamentar e extra-parlamentar; acabar com a liberdade de expressão; centralizar o poder quase absoluto nas suas mãos, pondo fim, de facto, à divisão de poderes: legislativo, executivo, judiciário, base de qualquer sistema democrático; pôr fim à primazia do direito internacional em relação ao direito interno; impor a pena de morte.

É verdade que, no plano interno, Putin e Erdogan estão em situações diferentes, o que leva a considerar que os processos de forma e actuação, bem como as consequências possam vir a não ser idênticas. Ao contrário do Presidente turco, o seu homólogo russo tinha umas forças armadas que comungavam com ele a ideia de que era necessário fazer com que o país “deixasse estar de joelhos” perante o Ocidente e que “respondesse às humilhações”. Além disso, os militares russos nunca desempenharam um papel político tão activo como os turcos.

Mais, as purgas no seio das forças armadas terão de ser tão profundas na Turquia que a sua realização ameaça provocar um novo golpe militar contra Erdogan, desta vez melhor organizado e mais eficaz. Não se pode esquecer que esse país é um dos membros da NATO e esta organização não deixará escapar facilmente este país estratégico.

Erdogan não tem uma oposição tão mansa como aquela que Putin encontrou na Rússia quando chegou ao poder em 2000. As tradições democráticas não são tão longas na Turquia do século XX como em parte dos países europeus, mas têm raízes mais profundas do que na Rússia e, por isso, a resistência à aprovação de medidas repressivas irá ser maior.

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O separatismo curdo que o Presidente turco enfrenta é fruto de um movimento com mais história e dimensão do que o separatismo checheno que Putin herdou do seu antecessor: Boris Ieltsin. Se o dirigente russo conseguiu limitar o separatismo a uma região de pequenas dimensões e cortar-lhe o apoio externo, isso não parece ser assim tão fácil fazer com os curdos que actuam não só na Turquia, mas controlam também territórios em países vizinhos, como é o caso do Iraque.

Não nos podemos esquecer também que as dificuldades económicas crescentes que a Turquia irá enfrentar não facilitarão as “reformas” de Erdogan, tanto mais que este não possui uma boia de salvação como o petróleo e o gás, boia essa que ainda permite manter a economia russa à tona…

Tão inimigos que nós éramos…

As relações entre Putin e Erdogan atravessaram períodos diferentes: foram amigos, inimigos e agora? Outra vez amigos?

O dirigente turco, depois da sua vitória sobre a tentativa de golpe, faz todos os esforços para voltar a ganhar as graças do seu homólogo russo. Receando o resfriamento das relações com a União Europeia e a NATO, bem como o aumento de dificuldades económicas, Erdogan parece ter decido aproximar-se de Moscovo.

Ainda antes dos sangrentos acontecimentos em Ancara e Istambul, o líder turco enviou um “pedido de desculpa” (coloquei essa expressão entre aspas porque, segundo alguns tradutores, na carta não está a palavra “desculpa”) pelo abate do avião militar russo por um aparelho análogo turco em Novembro do ano passado.

É de recordar que a Rússia reagiu a essa acção com fortes sanções económicas contra Ancara e Erdogan passou a fazer parte dos piores inimigos de Moscovo.

Depois da vitória contra os militares, os vencedores anunciaram a prisão dos pilotos turcos que tinham abatido o avião russo por “estarem implicados no golpe” e, logo a seguir, que essa decisão tinha sido tomada por um dos pilotos turcos sem consulta com as autoridades superiores!

Alguns órgãos de informação iranianos anunciaram, citando fontes diplomáticas em Ancara, que teria sido o Ministério da Defesa da Rússia a prevenir Erdogan do golpe militar em curso.

Da parte do Kremlin, esqueceram-se as acusações de que a Turquia era um dos principais apoiantes do Estado Islâmico na Síria e a propaganda russa mudou radicalmente de tom em relação a Erdogan. Além disso, este já recebeu um convite oficial para visitar a Rússia.

Esses e outros sinais, nomeadamente o facto do Kremlin ter sido dos primeiros a condenar o golpe de Estado, levaram a pensar que estamos perante uma forte aproximação entre Putin e Erdogan.

À primeira vista, os ganhos para Putin poderão ser grandes. Imaginem a Turquia a abandonar a NATO! Isso seria uma dádiva do céu para o dirigente russo. Deixaria de ter grandes dores de cabeça no flanco sudoeste e no Mar Negro, ganhando também um acesso mais seguro ao Mar Mediterrâneo; neutralizaria o sistema de defesa antimíssil da NATO. Os mísseis estão estacionados na Roménia, mas o radar, essencial para guiar os mísseis, encontra-se em Malatya, na Turquia.

Existe ainda mais uma vantagem mútua: a Turquia deixaria de incomodar os russos com as questões da Abkhazia e da Ossétia do Sul, na Geórgia, e Moscovo não focaria atenções na forma como Ancara resolve a questão curda.

Porém, a política de Moscovo em apostar em regimes ditatoriais e autoritários não tem trazido grandes proveitos à Rússia.

Erdogan vai precisar de grandes meios económicos e financeiros para estabilizar a situação no país, mas a Rússia também não está em condições de ajudar muito neste campo. É verdade que Moscovo voltou a autorizar os russos a descansarem na Turquia, mas isso será insuficiente, até porque a instabilidade política faz com que os turistas (mesmo os russos que não têm medo de nada) procurem lugares mais seguros, o mesmo acontecendo com os investimentos russos na economia turca.

Na reedificação das suas relações bilaterais com Erdogan, o Kremlin deverá levar em conta que o dirigente turco apenas se preocupa com o seu poder pessoal e que “a amizade com a Rússia” lhe serve apenas para reforçar a sua posição no interior do país, podendo, a qualquer momento, mudar de posição e “espetar um punhal” nas costas de Putin.

Em casos como a Turquia, pode-se afirmar que nem tudo o que vai contra os interesses do Ocidente é sempre favorável à Rússia.