Até que no passado fim de semana as ruas se encheram com uma massa humana quase impossível de quantificar chocada com os atentados, o que levara esmagadoramente para a rua os franceses foi a legislação em torno do casamento entre pessoas do mesmo sexo, da procriação medicamente assistida e das barrigas de aluguer. Entretanto no mesmo período a economia francesa apresentava sinais de declínio, os casos de agressões por razões religiosas e étnicas multiplicavam-se e a insegurança vivida nas ruas levava até a respostas armadas por parte de comerciantes fartos de serem assaltados e maltratados.
Em Portugal, no primeiro semestre de 2010, o país pagava juros cada vez mais altos para se endividar e a Segurança Social caminhava para a falência. Mas aquilo que o poder político impôs na agenda com a urgência de um assunto transcendente para os dez milhões de portugueses foi o chamado casamento homossexual. De 2010 até 2013, inclusivé, foram celebrados, segundo o INE, 1219 casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Como o multiculturalismo ainda não impôs o reconhecimento da poligamia e o casamento (por enquanto) é apenas a união entre duas pessoas, estes 1219 casamentos significam que o assunto que em 2010 discutimos acima de tudo e de todos e que levou até que se pedisse a demissão do Presidente da República (primeiro porque enviou o diploma para o Tribunal Constitucional depois porque após o parecer favorável do TC o promulgou) implicou simbólica e administrativamente com a vida de 2438 pessoas, naquele período. E escrevo simbólica e administrativamente porque na prática nada os impedia de fazer vida conjunta, transmitir entre si bens ou arrendar em comum uma casa. O que perturba não é que se tenha discutido esse assunto que em três anos alterou o estado civil de menos de três mil portugueses. O que perturba é que a discussão de outros assuntos tenha sido considerada tremendista (dívida), inoportuna (Segurança Social), populista (criminalidade).
Se quisermos uma imagem de uma sociedade aprisionada pela agenda de minorias não temos melhor que aquilo que vivemos nos últimos anos: nada do que diz respeito à sociedade no seu todo é discutido. Os políticos evitam dizer como pensam governar. Até se dá como adquirido que não o devem fazer para não afastar potenciais eleitores. A não ser que uma evidência incontornável, como um atentado ou um pedido de ajuda externa, obrigue a uma reflexão – breve, naturalmente – os líderes políticos não querem falar de política mas sim de questões minoritárias. Quanto mais minoritárias e de maior valor simbólico melhor. Esse tipo de questões permite-lhes manter viva nos eleitorados a convicção da diferenciação ideológica sem que alguma vez tenham de falar de ideologia.
Muito frequentemente este tipo de agenda tem servido também para que os governos não sejam confrontados com o seu desempenho. Recorrendo mais uma vez aos casos francês e português de aprovação de legislação sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, somos obrigados a concluir que tudo foi aprovado e legislado a correr, criando-se atamancadamente enquadramentos legais ambíguos que vieram complicar ainda mais questões complexas, como é o caso da adopção, do acesso à procriação medicamente assistida e das barrigas de aluguer. Havia que criar factos para iludir os problemas reais dos países e foi isso que se fez.
Num primeiro momento este tipo de agenda é interessante para todos, à excepção dos cidadãos transformados nuns “prakistamos” cujos problemas só existem quando e se as minorias os apadrinham. Na esquerda democrática a agenda das causas fracturantes substituiu a ideologia pois sendo óbvio que Marx já não serve para governar a verdade é que, na falta de ricos para lhes confiscar os bens, de empresas para nacionalizar e de moeda própria para imprimir dinheiro a gosto, não há programa. Assim falar da necessidade de produzir mais legislação para alegadamente combater a discriminação dos transexuais no mundo do trabalho permite à esquerda, sem qualquer incómodo, manter a velha separação entre reaccionários e progressistas. A isto acresce que, enquanto trata destes assuntos, em que a maioria das pessoas procura nem intervir para não cair na ira dos prosélitos (estes distribuem acusações de fobia com a fúria de quem acusa os outros de heresia) a esquerda ilude questões incómodas como se o financiamento da Segurança Social vai passar por pagarmos mais impostos. Ou quais as consequências da mutualização da dívida. O desenterrar da questão da regionalização por parte de António Costa, logo secundado por Rui Rio com a sua teoria de que Portugal se pode resolver pelo “abanão” (ainda havemos de chegar à imagem da chicotada psicológica!) mais não é que uma tentativa de criar polémicas que nos mantenham entretidos ou, parafraseando Rui Rio, verdadeiramente abanados, até que cheguem as legislativas sem que até lá tenhamos discutido qualquer traço da realidade.
À direita, que passou do terror de ser considerada fascista ao medo de ser designada liberal, este tipo de polémicas permite-lhes o show off dos valores e em alguns casos, perante a óbvia irrealidade das propostas, torna-se até o momento adequado para os seus protagonistas mostrarem algum bom senso. Mas sempre com a atitude blasée de quem sabe que vai perder. Afinal o fatalismo faz parte do jogo pois as suas posições são mais uma questão de diferenciação estético-social daquele folclore piroso da esquerda do que de convicção.
Para os extremistas esta aversão dos partidos do centro à realidade é o seu viçoso caldo cultura. Na esquerda extremista activíssima promotora destas temáticas, este tipo de agenda é um excelente investimento: cada causa fracturante garante-lhes mais lugares em observatórios, institutos e universidades, donde não se cansam de pedir mais e mais financiamento para estudos que invariavelmente concluem ser necessário um aprofundamento da legislação já aprovada. Aparecendo sempre como muito modernos, muito ao corrente de tudo e misturando citações de relatórios académicos que provam a justeza das suas teses com três ou quatro palavrões para “épater le burgeois”, acham-se não só senhores da verdade como mediaticamente lhes é reconhecido a gestão do direito de admissão dos assuntos e dos protagonistas. Veja-se o caso da violência doméstica, que agora tanto os comove, e que durante anos foi por eles relegada para as temáticas da “faca e alguidar” que nunca teriam lugar na sociedade perfeita que se propunham construir. Isto para nem falar dos homossexuais que apresentavam como o resultado degenerado de uma sociedade burguesa e em Portugal produto da ambiência salazarista.
Já à extrema-direita, pelo menos em França, o centrar do discurso político em matérias cada vez mais minoritárias, rende votos. Muitos votos. Sem ninguém para os ouvir falar dos seus problemas reais, muitos cidadãos viram-se para quem está lá – no caso a Frente Nacional – e que por exclusão do mundo mediático é poupado a ter de dizer como governará.
O pior chega depois. Naqueles momentos em que um atentado, a ameaça da banca rota, a decisão de uma editora de banir a palavra porco das suas publicações ou as agressões e insultos em centenas de escolas francesas a alunos que manifestaram o seu repúdio pelos atentados, nos confronta com a seguinte questão: com o que nos temos entretido ao longo deste tempo todo para termos chegado aqui?