O assunto da semana é, naturalmente, a proposta de Orçamento do Estado apresentada pelo governo. Nesta proposta, a “devolução” de rendimentos é acompanhada por um aumento dos impostos indirectos e patrimoniais. Ainda assim, muitos não conseguem perceber muito bem como é que isso é suficiente para chegar a um défice de 1,6% do PIB em 2017. O debate é particularmente interessante porque, no início do ano, (quase) ninguém acreditava que o governo conseguisse cumprir com as metas para 2016. Mas, com a proposta do Orçamento para 2017, veio também a previsão para este ano: um défice de 2,4% do PIB. Naturalmente, como (quase) todos os comentadores se enganaram na catástrofe anunciada para 2016, poucos arriscam dizer que a meta para 2017 é inalcançável. Politicamente, o exercício orçamental de 2016 significa que, de facto, havia uma alternativa à austeridade aplicada nos anos de Passos Coelho e Portas. E, claro, confirma que a alternativa não era nem abrir trincheiras, nem lutar por perdões de dívida, mas sim, dentro do quadro institucional europeu, cumprir as regras através daquilo a que agora se chama “austeridade de esquerda”.
Já há muitos anos que defendo a progressiva substituição dos impostos directos pelos indirectos. Por diversos motivos. Em primeiro, porque os impostos indirectos, ao penalizarem o consumo, funcionam, de certa forma, como um incentivo à poupança. Sendo a poupança essencial para financiar o investimento, é grave que Portugal seja dos países desenvolvidos que mais baixas taxas de poupança têm. É especialmente grave na actual conjuntura, em que a capacidade da economia portuguesa se financiar no mercado externo anda pelas ruas da amargura. Em segundo lugar, os impostos directos penalizam os rendimentos do trabalho e do capital, ou seja, penalizam a produção. E Portugal precisa de produzir mais e não de penalizar quem produz. Finalmente, alguns dos impostos indirectos justificam-se a si próprios. Por exemplo, o imposto específico sobre produtos petrolíferos é uma forma economicamente eficiente de obrigar as pessoas a ter em consideração os custos ambientais quando enchem o depósito do automóvel. Na gíria, dizemos que o preço ao consumidor deve reflectir os custos privados (i.e., os custos de produção), mas também outros custos sociais (como os ambientais). Ou seja, são impostos que melhoram a eficiência económica. Por estes motivos, não tenho problemas com o aumento dos impostos indirectos. Aplaudiria até se o governo fosse mais arrojado neste domínio, por exemplo acabando com várias das isenções e reduções de IVA para produtos específicos.
O resultado orçamental de 2016 veio mais uma vez confirmar uma ideia que tenho há algum tempo. No que respeita à responsabilidade orçamental, não existe uma clivagem esquerda/direita — excluamos da análise os últimos anos de loucura de Sócrates. Isto apenas confirma a literatura académica sobre o assunto, mostrando que o preconceito de que a esquerda é mais irresponsável é falso. Há, aliás, vários trabalhos académicos que desmentem esta hipótese e até alguns que concluem o oposto. Por exemplo, James Alt e David Lassen, respectivamente das Universidades de Harvard e Copenhaga, usando dados para os países da OCDE, concluíram que os défices orçamentais tinham tendência a aumentar com governos de direita. Vale a pena referir que Ricardo Reis chegou a conclusões semelhantes para Portugal, num pequeno ensaio que escreveu em 2009. São os governos liderados pelo PSD que são os campeões do aumento da despesa, mesmo não aumentando tanto quanto as oposições quereriam.
Na verdade, nada disto é surpreendente. No assunto da irresponsabilidade orçamental, a clivagem não é entre esquerda e direita, mas sim entre ser governo e ser oposição. Basta ver as reacções dos partidos de direita à proposta do Orçamento de Estado para 2017. Cristas, secundada por Maria Luís Albuquerque, quer alargar os aumentos de pensões propostos pelo governo, sem impor qualquer condição de recursos, arriscando-se a, verdadeiramente, esbanjar dinheiro. Já Passos Coelho acusa este Orçamento de ser um embuste e que o governo está a “transformar em impostos permanentes aquilo que tinha sido apresentado como uma solução de emergência, num quadro muito especial” a que “se chamou austeridade”. Ou seja, Passos Coelho diz-nos que seria possível atingir as metas do Tratado Orçamental recorrendo a medidas extraordinárias e temporárias. Convenhamos que reduzir a dívida pública de 130% do PIB para 60% recorrendo a medidas temporárias e extraordinárias é obra.
A conclusão é simples: bastou ao PSD e ao CDS irem parar à oposição para se tornarem tão irresponsáveis como o PCP e o Bloco durante a legislatura anterior.