A proposta que o Bloco de Esquerda, o grupo político de todas as causas e mais algumas, entregou no parlamento um projeto de resolução onde recomenda que o Governo altere o nome ao cartão de cidadão, defendendo que traduz uma “linguagem sexista” e “não respeita a identidade de género de mais de metade da população portuguesa”. A oportunidade da iniciativa mereceu merecidas críticas e até risadas de muitos comentadores nas redes sociais e nos órgãos de informação.

Ela trouxe-me à memória a famosa história do “sexo dos anjos” que, como é sabido, se tratou de debates teológicos que ocorriam em Constantinopla até nos momentos que precederam à sua queda diante dos turcos otomanos, no dia 29 de Maio de 1453.

Aliás o Império Bizantino acabou por desaparecer, mas a questão ficou por resolver até hoje pelas igrejas cristãs e, para bem da humanidade, não deverá ser mais levantada, porque só teremos novos “problemas sérios e decisivos” se os teólogos definirem que os anjos são homens ou mulheres. Mas se tal acontecer, o Bloco de Esquerda protestará contra essa decisão, porque os teólogos serão ou “machistas” ou “feministas” ou outra coisa qualquer. Por isso, lanço daqui um apelo ao Vaticano para que não abra mais uma frente de “combate ideológico civilizacional”.

Mas o mais curioso (não digo espantoso porque já nada já me espanta) é o facto de Eduardo Cabrita, ministro-adjunto, vir afirmar: “Estamos abertos a refletir sobre a evolução da sociedade neste tema, certos também que estaremos sempre a olhar para o futuro”.

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“Evolução da sociedade”? “Olhar para o futuro”? Não e não! Essa retórica não passa de mais uma forma de o Governo e o Partido Socialista irem ao encontro do seu parceiro de coligação em mais um sinal de submissão. A fim de manter o apoio da extrema-esquerda, o executivo parece estar disposto a baixar-se até à mais das indecorosas posições.

Compreenderia que ao falar-se da “evolução da sociedade”, do “olhar para o futuro”, se discutisse o estado da nossa educação, do desemprego, das pensões miseráveis que iremos receber nesse futuro, etc., mas do “cartão de cidadão”? Não se está a ir longe de mais no absurdo? Como comentaria isto Kafka se estivesse vivo?

Por este andar, o que irá fazer o Partido Socialista e o seu Governo se, um dia, precisarem do voto do Partido Pessoas-Animais-Natureza? Quanto às pessoas, os problemas ficarão resolvidos depois de se mudar o nome do “cartão de cidadão”, mas no que respeita aos animais e à natureza, poderemos começar a discutir a discriminação existente entre os gatos e as ratazanas, ou sobre a forma desumana como se combatem pulgas, piolhos, etc.?

Poderão dizer que estou a exagerar, mas se, há poucos anos, me dissessem que a discussão política iria chegar a este ponto no meu país, eu talvez não acreditasse.
P.S. Não será melhor fazer mais uma revisão do acordo ortográfico e acabar com esse “atavismo burguês” que é a existência de géneros masculino e feminino? Depois disso, os nossos políticos poderiam concentrar as suas atenções e ver que o barco está a afundar-se, mesmo que nessa altura já todos tenhamos o “cartão de cidadania”.