A narrativa orçamental do governo não pegou. Pouca gente parece disposta à “suspensão da descrença” que, segundo Coleridge, é necessária a qualquer ficção. Mário Centeno devia ter lido menos J.M. Keynes e mais H.P. Lovecraft. Algures, Lovecraft explica que no género fantástico é um erro exagerar na fantasia. No caso do Esboço do Orçamento de Estado para 2016, o governo exagerou. Os leitores reagiram: a Comissão Europeia, o Conselho de Finanças Públicas, a Unidade Técnica de Apoio da Assembleia da República, as agências de notação, a imprensa nacional e internacional – começam a ser demasiados os que não acreditam na ficção governativa de que gastar mais é a via para equilibrar as contas.

A “suspensão da descrença”, neste caso, tem ainda outra causa: a suspeita de que este neo-despesismo não corresponde a nenhuma política de “justiça social”, mas à simples necessidade de pagar ao PCP o seu apoio parlamentar, satisfazendo as suas clientelas sindicais – o que também explica a entrega do ensino público à tutela de Mário Nogueira. Por enquanto, as larguezas monetárias do BCE mantêm os mercados anestesiados, e portanto os mercados servem ainda às musas governamentais para se passarem a si próprias atestados de bom comportamento. A Comissão Europeia, pelo contrário, já foi processada por ingerência. Os defensores da soberania orçamental esquecem-se de um pormenor: a Comissão Europeia interfere nos nossos orçamentos, não apenas porque estamos no Euro, mas porque nós interferimos nos orçamentos dos outros europeus, pedindo-lhes dinheiro para os nossos défices. Para Catarina Martins, é tudo uma questão de Costa mostrar que é “diferente de Passos Coelho”. Mas o país não é diferente: continua a ser aquele que em 2011 entrou em bancarrota.

No meio disto, começa a haver quem receie o pior. E o pior, segundo consta, seria um “segundo resgate”. É curioso. Os portugueses conseguiram mesmo convencer-se de que o ajustamento financeiro negociado em 2011 com a Comissão Europeia, o BCE e o FMI foi a maior calamidade que nos podia ter acontecido. Nunca quisemos compreender que foi uma ajuda. Nunca chegámos a entender que, sem o programa de ajustamento, teríamos tido uma bancarrota, em relação à qual a “austeridade” está como um resfriado para uma pneumonia. Não, o pior que nos pode acontecer não é um “novo resgate”. E portanto, há que fazer a pergunta: se não houver outro resgate? E se, quando nos faltar o dinheiro e o crédito, não houver ninguém para nos emprestar, para nos dar tempo, para confiar em nós?

A União Europeia de 2016 já não é a de 2011. Os políticos europeus que em 2011 fizeram aprovar a ajuda a Portugal, e que depois nos foram concedendo novas metas e novos prazos, talvez não o consigam fazer uma segunda vez. Em 2014, quando Portugal se voltou a financiar por si no mercado das obrigações, esses políticos ainda puderam  dizer aos seus eleitores que tinha valido a pena, que os portugueses haviam aproveitado a oportunidade. Mas agora? A Grécia, o ano passado, testou os limites da tolerância dos outros contribuintes europeus. Desde então, tudo piorou. O fluxo de migrantes agravou o peso do euroceptismo nos governos. O confisco da Dinamarca, a expulsão da Suécia, a privação da nacionalidade em França são sinais de que a Europa de 2010 e de 2011, que votou milhões de euros de auxílio à Grécia, à Irlanda, a Chipre, à Espanha e a Portugal, talvez já não exista. Seria da mais elementar prudência não voltar a precisar de lhe pedir dinheiro. É que nos arriscamos a descobrir que desta vez talvez ninguém se queira ingerir na nossa vida.

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