Cidadãos comuns, que se dirigem a um hospital público na capital do país para fazer uns simples exames, saem de lá infectados com Legionella e morrem.

Mas não se passa nada. Pelo menos ainda não se passou nada e não temos a mais pequena ideia de que alguma coisa vá acontecer. É mesmo possível que não aconteça nada.

Basta recordarmos o que aconteceu este Verão com os incêndios. Em Pedrógão Grande morreram 64 pessoas, a maior tragédia de sempre num fogo florestal. Foi em Junho. Em Julho, Agosto, Setembro e boa parte do mês de Outubro não soubemos com um mínimo de segurança o que tinha corrido mal. Só em meados de Outubro, numa altura em que o país estava de novo a braços com fogos devastadores, foi publicado o relatório de uma comissão técnica independente com conclusões minimamente claras.

Houve aqui um padrão. Enquanto teve artes para isso, o Governo tratou de confundir-nos. Pediu relatórios a toda a gente e mais alguma, colocou serviços públicos contra serviços públicos, atirou culpas para um lado e culpas para outro, baralhou e disfarçou. Tratou de tornar o fumo mais espesso, não de limpar a atmosfera e esclarecer os cidadãos. Trabalhou para escapar às responsabilidades.

E só não escapou a essas responsabilidades porque outra tragédia, em Outubro, o obrigou a reconhecer que nada podia ficar como dantes. Pelo caminho ficaram entretanto mais 47 mortos.

É por conhecer este padrão que não tenho muitas esperanças que sejamos rapidamente esclarecidos sobre o que se passou no Hospital São Francisco Xavier. Tal como não tenho muitas esperanças que sejamos esclarecidos sobre o que quer que seja.

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Reparem, por exemplo, em como ainda não fomos esclarecidos sobre o que se passou em Tancos. Só temos conhecimento do que, fosse este país um lugar razoável e responsável, seria considerado inimaginável. Não falo do roubo em si – roubos podem sempre ocorrer. Falo de termos um ministro da Defesa que, depois do roubo, deu uma entrevista a dizer que talvez nem tivesse havido furto. Falo de afinal ter havido mesmo roubo e de, quando as armas foram recuperadas, ter sido encontrada uma caixa a mais, uma caixa que nem se sabia que tinha desaparecido. Falo de o chefe de Estado Maior do Exército, general Rovisco Duarte, ter considerado que existir uma caixa de petardos a mais era apenas uma “ligeira discrepância”, até “perfeitamente compreensível”. Falo da guerra surda (mais uma) entre os diferentes serviços de investigação, os civis e os militares, sem nós sabermos em quem confiar ou termos uma noção de quem realmente manda. Falo de a segunda figura do Estado, o presidente da Assembleia da República, ter considerado, com aquela leveza que o caracteriza, que “Tancos teve momentos altamente cómicos”.

Mas há mais, muito mais. Há poucas semanas soubemos, por exemplo, que o Tribunal de Contas descobriu que o Ministério da Saúde andava a manipular as contas das listas de espera. Objectivo? Enganar-nos, a nós cidadãos, sobre a degradação do Serviço Nacional de Saúde.

Esta semana soubemos que o Conselho Nacional de Saúde considera que tem havido um subfinanciamento do SNS na casa dos mil milhões de euros. Pior: de acordo com os dados mais recentes, em 2017 o ritmo do crescimento dos pagamentos em atraso dos hospitais do Estado tem sido mais rápido do que nos anos anteriores.

Pior ainda, se é que é possível. Em 2015, o então ministro da Saúde Paulo Macedo aprovou um financiamento de cinco milhões de euros para o IPO de Lisboa alargar e modernizar o seu bloco operatório. No final de 2017, o ministro das Finanças Mário Centeno ainda não libertou esse dinheiro – tem-no “cativado”. Entretanto aumenta o número de doentes oncológicos à espera de cirurgia e degradam-se as instalações, que exigem intervenção urgente.

Estas notícias referem-se ao mais sacrossanto dos serviços públicos, ao que estava sempre na boca dos partidos da geringonça nos anos da troika. Estas notícias mostram-nos que o SNS – enquanto serviço prestado aos cidadãos, não enquanto empregador de médicos e enfermeiros – dá sinais de estar a funcionar com mais dificuldade agora do que no tempo dessa maldita troika. Com tantas ou tão poucas necessidades que 500 mil euros dos donativos que os portugueses entregaram à Caixa Geral de Depósitos para apoio às populações afectadas pelos fogos de Pedrógão foram desviados para pagar equipamentos dos hospitais de Coimbra – nos hospitais do SNS.

Escândalo? Indignação? Nada. Não se passa nada.

Prossigamos, que o funcionamento do nosso Estado continua a brindar-nos com surpresas nalgumas das suas áreas nucleares, como as da segurança e soberania. O exemplo mais recente é o da inação das autoridades no caso das agressões no Urban Beach. Na altura a PSP foi chamada e tomou conta da ocorrência, mas durante dois dias nada sucedeu. A informação nem sequer foi inserida no sistema. Foi necessário um vídeo começar a circular nas redes sociais para a polícia desenterrar o caso. Tal como foi necessário a imprensa recordar que, naquela discoteca, as queixas de agressões violentas se contarem às dezenas para as autoridades decidirem encerrá-la. Não sabiam de nada antes? Não tinha tocado nenhum sinal de alarme? Ninguém avisara? Mais uma vez não creio que alguém nos venha a responder.

Para que tudo isto esteja a acontecer há muita coisa a falhar, e muita coisa a funcionar deliberadamente mal.

Uma parte desta leveza com que passamos de assunto grave em assunto grave é, lamento dizê-lo, um sinal preocupante da forma como funciona a nossa democracia e como se agita o nosso espaço público. Estes casos, e muitos outros de que nem conhecimento temos, reais ou imaginários, enchiam noutros tempos os jornais porque a oposição de extrema-esquerda não se calava – e a generalidade da comunicação social não se incomodava de fazer de pé de microfone. Havia “comissões de utentes” por todo o lado, “associações” de representatividade desconhecida que estavam sempre a ser chamadas à antena, um mundo habitado por gente que antes estivera nos sindicatos da CGTP, depois fora candidato a uma câmara ou a uma junta pelo PCP ou pelo Bloco, mas que nem precisava das redes sociais para ter importância e visibilidade.

Agora todo esse mundo está mudo e quedo.

Mas não devemos surpreender-nos com este silêncio cúmplice: acabamos de recordar a Revolução de Outubro de 1917, lemos imensa coisa sobre Lenine e os seus métodos, temos obrigação de saber que a “verdade” para os comunistas só existe se servir a política. Eu sei que hoje poucos ligam às lições do passado e menos ainda conhecem a doutrina, mas a forma como os partidos da geringonça passaram a aceitar, ou mesmo a justificar, o que antes denunciavam furiosamente segue rigorosamente esses ensinamentos. Como se costuma dizer, vem nos livros.

O que nos deveria surpreender é a incapacidade de a direita, agora na oposição, ser oposição efectiva, conseguir reunir a informação que antes nos chegava pelas “comissões de utentes”, não se ficar apenas pelas generalidades sobre as cativações, antes ser capaz de descobrir e denunciar os efeitos concretos dessas cativações.

O que também nos deveria surpreender é a forma como antes boa parte da comunicação social não se incomodava em ser altifalante dos mais minúsculos tentáculos da asa esquerda da geringonça, ao mesmo tempo que hoje passa por cima de casos como alguns dos que relatei atrás sem se deter neles mais do que um segundo.

Só que este silêncio cúmplice dos que antes gritavam não justifica tudo. Tal como nem tudo pode ser explicado pelo spin governamental. É que ao mesmo tempo, se há uma constante nesta governação, ela é o esforço da equipa de António Costa para acabar com as entidades independentes, quer através da nomeação de subordinados para lugares onde deveriam estar pessoas à prova de qualquer suspeição, quer pela subalternização de reguladores e fiscalizadores, quer ainda pelo ataque frontal aos organismos independentes que ainda resistem.

Não se trata apenas de uma lógica de “jobs for the boys”, trata-se de uma visão do Estado e da Administração Pública como simples extensões da vontade do poder político. Das telecomunicações à energia, da comunicação social à ostracização da CRESAP, o Governo prefere controlar e comandar. E quando não pode abafar as más notícias, trata de garantir que nunca ficaremos a saber o que realmente se passou – como não ficámos a saber depois do vergonhoso trabalho das comissões de inquérito parlamentar ao que se passou na Caixa Geral de Depósitos.

Tudo domesticado, tudo obediente, tudo disciplinado (como disciplinados eram os companheiros e ministros de Sócrates que nunca viram nada, nunca souberam de nada, nunca estranharam nada, sobretudo nunca falaram sobre nada).

Por tudo isso deixem estar: não se passa nada.

P.S. Quem acha que nada mudou no PS, no PS que em 1975 evitou que em Portugal houvesse uma reedição da trágica Revolução de Outubro, tem de saber que hoje há quem seja deputado e líder do partido e se refira ao golpe de Estado orquestrado por Lenine como “a mãe de todas as revoluções”. Triste sinal dos tempos.