No Natal de 2015, mesmo os mais distraídos, somos constantemente interpelados pela realidade e notícias que nos invadem, ferem e atormentam, quanto a guerras, terrorismos e outras violências várias, desemprego, sem-abrigo, refugiados, deslocados, etc.
Perante o vendaval que tem varrido a nossa Europa (e não só) com egoísmo, ganância, consumismo, hedonismo, corrupção.. haverá alternativas? Penso que sim, com optimismo realista e esperançoso, indispensável cimento construtor de futuro mais promissor e feliz.
É interessante abordarmos dois notáveis e polifacetados pensadores contemporâneos, um português e outro francês, ambos agnósticos, António Sérgio (1883-1969) e André Malraux (1901-1976).
Sérgio, com o seu racionalismo idealista, publicou em 1925 na “Seara Nova” um texto, mais tarde incluído no volume VI dos “Ensaios”, com o título “Diante de um Presépio”, onde escreveu: “Deus – e não um deus, mas Deus, – vê-se hoje na figura de um menino pobre, deitado e risonho sobre a palha humilde “; é um símbolo onde “palpita oculta (…) a ideia humana superior e eterna”: a de que acima do poder de qualquer César está a “grandeza espiritual estreme”, enquanto “Forma pura, amplíssima caridade, aspiração sem termo… Entendei o Presépio, ó irmãos que o adorais: Deus é um menino, um menino é Deus!”. António Sérgio passou a defender, nos últimos anos de vida, que o caminho do futuro deveria ser uma generalizada revolução verdadeiramente cristã, como testemunhei e conforme documentação que ele, meu Mestre e tio-avô, me ofereceu.
Da obra de Malraux, foquemo-nos agora apenas na sua profética frase “O século XXI será espiritual. Ou não será”, que irrompe do texto “A propósito do século XXI”, publicado em “L’Express” de 21 de Maio de 1955. Assim, este autor vaticinou, com extraordinária perspicácia e antecedência, a basilar vida espiritual para a nossa sobrevivência comum neste século XXI, centúria que quase logo se iniciou com os terríficos embates do 11 de Setembro de 2001 e da crise financeira de 2007.
É animador verificarmos que, da tão laicista França desde o século XVIII, surgiu, ainda em meados do século XX, esta chave espiritual de solução para o até agora já tão atribulado século XXI.
Anote-se que a Igreja Católica, sobretudo a partir do Concílio Vaticano II (1962-65) se abriu à compreensão ecuménica e inter-religiosa com judeus, islâmicos, etc., mas não basta uma abertura unilateral…
Sublinhe-se que há imenso bem diariamente praticado por indivíduos e grupos, crentes e não crentes, o qual fica injustamente escondido perante a torrente de desgraças que nos fazem saber. Proponho que na Comunicação Social sejam estipuladas quotas de paridade de boas e más notícias, pois está cientificamente provado que o bem, de que todos tanto necessitamos, é contagioso.
Estamos, na alvorada de 2016, sem dúvida em época de urgentíssimas e decisivas escolhas para a civilização ocidental, urgindo que o espírito de Natal se torne mais espiritual e global.
Muito além da indispensável separação dos poderes espiritual e temporal, em vários países tem soprado forte vento laicista, como se tal fosse caminho para o diálogo, a compreensão recíproca, a paz, quando acontece o contrário…Esta militância laicista pretende não só fazer desaparecer os símbolos cristãos e do Natal, mas também acabar com as festividades natalícias, substituindo-as até por comemorações pré-históricas, ou pré-romanas, do solstício de Inverno, em que é preponderante a exaltação da luz. Ignoram estes que nas romanas festas saturnais, que ocorriam também nesta época do ano, já havia o progresso civilizacional da defesa da igualdade social, tendo então nesses escassos dias os escravos o direito de comportar-se como se livres fossem, correspondendo ao arreigado desejo humano de liberdade e de igualdade, anseios cuja concretização sem dúvida avançou imenso com a vinda de Jesus Cristo.
Com o Cristianismo, e Cristo surge como a Luz do mundo, é defendida não só a igualdade social plena, mas o amor e a fraternidade entre todos os homens, o que constitui uma profunda revolução, que dois mil anos depois continua a sua dificílima caminhada, sendo os cristãos os maiores alvos de perseguições, com o maior número de mártires, neste ainda nascente século XXI.
Muitas vezes não se repara que dos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade proclamados no final do século XVIII pela Revolução Francesa, o ideal também cristão da fraternidade é aquele que ainda hoje mais tarda em ser atingido.
Na ânsia de também secundarizar o espírito de Natal, há muitos que enfatizam o Pai Natal, esquecendo-se de que este tem origem em São Nicolau, bispo nascido na Turquia e falecido no século IV, em 6 de Dezembro, dia que é agora por vezes aproveitado para antecipar os festejos para os inícios do mês. Este santo, distinguido pela caridade e afinidade com as crianças, venerado pela Igreja Ortodoxa e pela Igreja Católica, padroeiro da Rússia, Grécia e da Noruega, é tradicionalmente celebrado por exemplo na Holanda, designadamente na multicultural cidade de Amesterdão. Deve-se salientar que recentemente foi declarado o falhanço da tão apregoada moderna teoria do multiculturalismo, hoje em dia já disseminada por diversos países, a qual em vez de ter incrementado o diálogo, o amor, criou guetos de ódio, propiciadores até de violência extrema.
Mesmo para os não cristãos, Natal significa tempo de festa, envolta em bondade, em afectos, sobretudo para com as crianças e a família.
O que, nós cristãos, celebramos em concreto no Natal? Um Deus tão amigo do homem que, para responder às suas dúvidas e exigência de sentido da vida, lhe oferece o seu próprio Filho. “Assim, (escreve o Padre António Vaz Pinto) ao contemplar, no presépio, o Menino acabado de nascer, deixando de lado o folclore, os presentes, as rabanadas, as luzinhas, naquele Menino vemos a imagem surpreendente de um Deus, pequeno, pobre e humilde, o verdadeiro rosto do Amor. Quando levamos a sério este presente de Deus a cada um de nós, quando tomamos consciência de que Deus se fez homem para que o homem se fizesse Deus, então tudo se torna diferente…Então, percebemos que o fundamental não é o ter mas o ser, que o que verdadeiramente conta não são as coisas, mas as relações. Temos de tirar o Menino Jesus do presépio para o pôr no centro do coração e no centro da vida. Então haverá Natal, então brotará a vida”.
No entanto, mesmo na época do Natal encontramo-nos infelizmente ainda agora demasiadas vezes tão, tão longe do espírito de amor, fraternidade e paz que devia iluminar todos os corações e acções de todas as raças, etnias e credos, procurando criar um mundo unido, como Chiara Lubich (1920-2008), fundadora do católico Movimento dos Focolares, pregava de forma pioneira.
O Papa Francisco inaugurou há dias o Ano da Misericórdia, que é também um convite a pormos de imediato em prática um Natal alargado.
Urge que todos os corações, não crentes e crentes de todos os credos, ponham em prática o amor recíproco, a favor de um permanente Natal, mais espiritual e global!
Professora universitária, antiga deputada independente eleita pelo PS