Nasci entre mulato e monhé. Imigrante na antiga metrópole colonial, aprendi também a ser negro. Entre os meus conterrâneos é longa a tradição de estereótipos depreciativos dos mulatos (“Mulato é filho de uma quinhenta”, insulto polido conotado com o valor insignificante pago pelos brancos que frequentavam a prostituição negra suburbana no tempo colonial, “Mulato não tem bandeira” ou “Mulato ou é mecânico ou é ladrão”), ao mesmo tempo que Barack Obama vale como fonte do seu orgulho negro, sintoma de um mundo crescentemente interligado nas suas complexidades.

Na qualidade de destratado, refiro que os estereótipos (limito-me aos raciais e étnicos) não são necessariamente produto de falsidades, erros ou absurdos. Pelo contrário, podem conter um fundo de verdade e serem indispensáveis para que o comum dos mortais consiga simplificar informações, sempre intermináveis e complexas, sobre quem é diferente. A exigirem intervenções terapêuticas dada a sua natureza simplória, elas devem valer tanto para os produtores de estereótipos depreciativos quanto para os visados, contando que se distingam radicalismos e violências. Não deixa de ser útil que os visados se sintam pressionados a transformar, por si mesmos, o que os outros pensam deles.

A radicalização da noção do estereótipo como deficiência cognitiva comporta uma dose de desrespeito pela inteligência comum. Os meus conterrâneos lá terão as suas razões.

Todavia, o tapete que esconde o essencial é a palavra racismo, cadáver de um tempo passado. Ela converte automaticamente uns em eternos culpados entre demais cândidos. Nas sociedades brancas, o paradoxo é o dos custos sociais acabarem por ser tanto mais pesados quanto mais as minorias buscam proteção na redoma antirracista. É tempo de romper este ciclo vicioso.

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As sociedades ocidentais, a origem histórica do problema, criaram-no na sequência de terem sido as únicas onde existiu uma cruzada moral genuína contra a escravatura, como explicou Dinesh de Souza. Apesar e por causa dos abusos dos seus no passado, no último meio século, os ocidentais têm sido os que mais se destacam no esforço efetivo de reversão das mais variadas formas de discriminação com resultados convincentes. E nada indicia que a tendência seja reversível. Para os críticos, longas experiências vividas enquanto minorias (raciais, religiosas, sexuais) em sociedades esmagadoramente negras ou islâmicas da atualidade teriam efeitos terapêuticos.

Ao menos por esta razão as sociedades ocidentais são merecedoras do maior respeito. De um respeito que deveria partir das minorias raciais e étnicas. A dignidade própria não é dissociável da dignidade que se reconhece aos outros e por aí se reforça a legitimidade crítica. Infelizmente quase não se dá por isso.

Recorro a um dos domínios com impacto massificado. As escolas das periferias urbanas de Lisboa, Setúbal ou Porto, como todas as demais, outra coisa não têm feito nas últimas décadas que não seja a integração e promoção das minorias. Os obstáculos não estão mais do lado das instituições. Residem num retorno escasso e, não raro, moldado pela insuportável altivez da vitimização dos que se revelam incapazes de reconhecer o esforço genuíno dos outros na valorização da condição humana. E já lá vão gerações, com a particularidade das sociedades ocidentais não sacrificarem o inalienável direito às liberdades individuais. Proeza rara.

Além dos próprios, a substância do que persiste de disfuncional recai naqueles ocidentais que, no passado, mais se destacaram na reversão das injustiças raciais. Mérito seu. Todavia, soluções que pareciam razoáveis há meio século transformaram-se em fontes por excelência do que persiste de problemático.

Se para os ricos a cor de pele deixou de ser obstáculo, nos tempos que correm para ser reconhecido valor social acima do elementar ao negro é quase inevitável que este tenha de se demarcar da “cultura branca”, do “colonialismo”, do imperialismo, do capitalismo, da opressão dos povos sempre a partir de um tenebroso Ocidente. Ou seja, a ecologia pressiona o negro à conquista de valor social mantendo sempre latente o trunfo do dedo apontado aos eternos brancos racistas ao menor pretexto.

Na prática, ou o negro se identifica com as ideologias de esquerda, pagando o respetivo tributo histórico, ou pouco conta socialmente, num processo em que a atitude abúlica das direitas não ajuda. Ser de esquerda – mais o hip hop, o kuduro e outras manifestações “próprias”, incluindo participar em movimentos antissistema – mais não é do que a nova carta de alforria.

No caldo ideológico em que vegetamos, torna-se difícil ter em conta o quão decisivas são as tensões identitárias e culturais no interior dos grupos étnico-raciais para a afirmação desses mesmos grupos em sociedades às quais o mundo de hoje impõe heterogeneidades. Todavia, a expressão e a promoção pública de tensões internas está praticamente interdita a negros (e ciganos). Essa é a consequência de um dos paradoxos do Ocidente, o da glória ficar reservada a um certo tipo de negro. O outro no máximo atinge notabilidade agregado à marca indelével de vilão, o que partilha de modo menos ambíguo os valores civilizacionais herdados da mais nobre e milenar matriz filosófica e cristã ocidental.

Seria quase impossível que Condoleezza Rice – mulher, negra, republicana, conservadora, de “direita” – tivesse sido sublimada à dimensão de Barack Obama – homem, negro, democrata, progressista, de “esquerda”. Qualquer deles, como quaisquer outros, fez uma interpretação subjetivamente justa do percurso histórico da identidade racial a que pertence e da qual sabe não escapar. A questão é que, como Roma, o “mainstream” ideológico-intelectual branco não paga a traidores. Com isso, praticamente ficou trancada a porta à projeção social de minorias que se procuram afirmar dentro das minorias.

Por cá, de modo tímido e a destempo, prepara-se o voo de António Costa e não se dá por Passos Coelho ser casado com quem é.

Nisto faço fé na função do parricídio simbólico, seguido de remorsos e arrependimento que conduzem ao retorno ao pai assassinado na forma de culto, passando os filhos órfãos a viver numa relação ambivalente, conflitual, mas por isso mesmo fecunda com a sua ancestralidade. Não vejo outro caminho para que as identidades raciais ou étnicas entrem na maturidade.

Olhando o contraponto, entre as minorias branca ou mestiça que se filiaram, em África, aos movimentos nacionalistas (e.g. Frelimo ou MPLA) e às nacionalidades africanas saídas das independências, a sua rutura ostensiva foi com o pai colonial branco. Pertenciam a essas minorias os que, em África, mais se destacaram na perseguição aos portugueses brancos “colonialistas” na altura das independências e essa diáspora foi alimentadora originária exímia do anti-portuguesismo, fenómeno vivo em Angola ou Moçambique. De resto, os próprios colonos eram-no mais em nome das colónias do que da metrópole, razão do seu desamparo nos dias da descolonização.

Ao fim de meio século as minorias raciais que ostensivamente se filiaram a África vão-se reaproximando de Portugal e do Ocidente, isto é, da terra do ancestral pai colonial, até porque o peso crescentemente agressivo das maiorias negras também ajuda. O facto é que o conflito no interior da vasta comunidade branca e mestiça, com o correr da história, vai caminhando para a reconciliação. Mas o período de rutura foi decisivo para que, hoje e no futuro, possa existir uma relação reinventada e bem mais matura de respeito mútuo entre aqueles que, apesar de dispersos pelo mundo e de nacionalidades diferentes, partilham uma mesma ancestralidade, cuja cor de pele (e língua) não permite elidir, estejam eles em minoria em África ou em maioria na Europa.

A censura académica mãe do politicamente correto jamais permitiu que um processo equivalente ocorresse nas sociedades brancas ocidentais. É intrigante que não tenham existido movimentos identitários, intelectuais ou culturais das diásporas negras que rompessem de modo explícito, até radical, com África e com os africanos. E nunca faltaram motivos, em particular desde as independências. A música popular de expressão negra revela à saciedade o guião estereotipado que lhe ficou reservado. Como se os indivíduos não fossem marcados por dúvidas, contradições, ambivalências, conflitos com o que há de mais íntimo em si.

A incapacidade de cisão interna nas identidades negras onde quer que elas existam, em particular o parricídio simbólico nunca tentado pelas diásporas, trava a sua integração eficaz nas sociedades brancas, bem como gera efeitos perversos na África pós-colonial. Estas sociedades, como outras, para se reinventarem dependem de atitudes críticas fortes e incisivas aos seus hábitos e vícios quotidianos, ao que é disfuncional na sua matriz africana. A questão é que não é qualquer um que tem legitimidade para desempenhar essa função. Goste-se ou não, a história tornou a cor da pele o atributo decisivo. O problema é a radical falta de comparência crítica das diásporas negras aprisionadas no armário branco.

Se a Europa se reinventa continuamente é por ter de encaixar críticas, em geral impiedosas, aos seus abusos e vícios vindas dos seus ou descendentes dos seus que se fixaram ou viveram nas diásporas, atitudes plasmadas na mãe das independências contemporâneas, a dos Estados Unidos da América no século XVIII. Padre António Vieira, Marquês de Pombal ou Eça de Queirós, entre inúmeros, inserem-se nessa secular tradição que se confunde com uma norma identitária.

É certo que, no caso da comunidade branca, as migrações foram voluntárias, enquanto a diáspora negra tem na génese a violência da escravatura. Mas não é menos seguro que, por um lado, é dramático ser-se duplamente vitimado pela história (no passado e pela incapacidade de exorcizar esse passado no presente) e, por outro lado, para as identidades coletivas, o simbolismo da morte do pai ancestral é implacável. Ninguém cresce sem cortar o cordão umbilical. Não tem a ver com a cor da pele. Faz parte da condição humana. Freud explica.