As coisas mudaram, é claro. Mas, sob muitos aspectos, são as mesmas. Entre as reacções ao 11 de Setembro de 2001 e as reacções aos atentados de Paris do dia 13 há continuidades notórias. Em 2003, Fernando Gil e eu próprio publicámos um livro, Impasses, que continha igualmente um texto de Danièle Cohn, Coisas vistas, coisas ouvidas, onde procurámos analisar o ambiente intelectual consecutivo aos ataques de Nova Iorque e à segunda guerra do Iraque. Passarão em 2016 dez anos sobre a morte de Fernando Gil, e tenciono numa das próximas semanas falar um pouco da sua verdadeiramente importante filosofia. Entretanto, apetece-me lembrar algumas das coisas que dizia o livro, em relação ao qual pouca coisa me parece merecer correcção substancial (mesmo no que respeita à guerra do Iraque), e que se aplicam, creio eu, à situação presente.

Sem se precisar de pathos nenhum, mas de uma forma descritivamente quase neutra, é preciso notar – e foi notado – que os ataques de Paris representaram, como os de Nova Iorque no passado, um ataque ao modo de viver ocidental. Não é preciso atribuir a “Ocidente” um sentido unívoco e maciço: basta reconhecer, sem se precisar de elaboração nenhuma, que a palavra designa efectivamente um conjunto de valores e de modos de viver que dão corpo a uma realidade que, quaisquer que sejam as suas tensões internas, representa algo que merece, e deve absolutamente, ser defendido. Os ataques visaram um dos aspectos dessa realidade: foram dirigidos a cafés onde as pessoas bebiam álcool, a uma sala de espectáculos onde tinha lugar um concerto rock, a um estádio onde se disputava um jogo de futebol. O desejo de viver melhor, em liberdade e com prazer, faz parte, de uma forma reflectida, da cultura ocidental. Os alvos apresentam uma coerência notável, que nada deve ao acaso. O prazer, ou o simples divertimento, simbolizavam o todo. E é esse todo que suscita o ódio, tanto mais que os terroristas percebem, com horror, a sua capacidade de sedução.

Os valores que os terroristas defendem são, militantemente, os valores da morte e não os da vida. Bin Laden disse-o claramente no passado – nós, ocidentais, contrariamente aos jihadistas, preferimos a vida à morte – e os actuais terroristas islâmicos partilham inteiramente essa glorificação da morte e esse desprezo pela vontade de viver. Tal atitude mental tem um nome certo e claro: niilismo. O desejo da aniquilação, a paixão da destruição, obedecem a uma lógica quase sem falhas. Muita gente fala – hoje como após o 11 de Setembro – da necessidade de compreender os motivos do terrorismo para o combater. E alguns supõem mesmo que de uma sua imaginária compreensão decorrerá quase automaticamente a solução do problema. Ora, se há alguma coisa a compreender é mesmo esse desejo de morte, o niilismo que subjaz ao acto terrorista. Não, por exemplo, a pobreza, como recentemente pretendeu o Papa, numa das suas já frequentes distrações. E, infelizmente, não se pode dizer de ciência segura que de uma compreensão o mais completa que seja desse desejo resulte o esclarecimento perfeito das vias certas para lidarmos com os terroristas.

Tanto mais que há um problema suplementar, que é o problema da má-fé. A denúncia do niilismo subjacente ao acto terrorista esbarra imediatamente contra a objecção segundo a qual há uma responsabilidade pelo menos indirecta nossa no surgimento desse acto. São as nossas sociedades, as chamadas democracias liberais, as responsáveis últimas pelo desejo de morte dos outros. Pelo que fizeram, pelo que não fizeram, pelo que abandonaram a meio, pelo que começaram tarde – tudo o que se quiser. O “tudo o que se quiser” é essencial, ele é o mais costumeiro e indubitável dos sinais da má-fé, que faz com que o outro, faça o que fizer, se encontre fatalmente designado como objecto de ódio e repulsa. Em última análise, embora se tenha geralmente cuidado em não expressar a coisa tão claramente, as próprias vítimas directas, os que morreram nos atentados, não se encontravam completamente ausentes de culpabilidade, na medida em que, de um modo ou outro, pactuaram com as sociedades que geraram as condições propícias para o surgimento dos actos terroristas.

E, sobretudo, que não se fale de islamismo. Falar de islamismo a propósito dos atentados dos terroristas islâmicos é imediatamente tornar-se suspeito de maniqueísmo e de islamofobia. É inútil tentar explicar que “fobia” significa medo e que, somando tudo, o medo do islamismo é uma reacção bem compreensível. Como é inútil notar que os atentados são cometidos em nome de uma realidade, certamente em si mesma complexa e multifacetada, que se chama “Islão”. E, mais do que inútil, pode ser perigoso mencionar o simples facto de que certas passagens do Corão, se interpretadas literalmente, incitam efectivamente à violência contra judeus e cristãos. Melhor dizendo: ao assassinato de judeus e cristãos. Dir-se-á que a Bíblia contém idênticos incitamentos à violência. De acordo. Acontece que há no mundo muitos cristãos e judeus, mas, que eu saiba, adoradores do bezerro de ouro não deve haver nenhum. Nenhum ponto de diferença, aqui como nos dois primeiros casos, entre o que se passou a seguir ao 11 de Setembro e o que se passa agora.

Excepto, é claro, o grau de passionalidade na expressão das opiniões, resultante, em parte, da magnitude e do grau de surpresa que separa os dois ataques terroristas. A escala do atentado de Nova Iorque foi indiscutivelmente maior e a destruição das Torres Gémeas apanhou-nos em estado de radical desprevenimento. Em Paris, foi diferente. Sobretudo, não foi um começo inaudito, foi mais um episódio de uma série sangrenta. Um episódio que – desta vez não já pela boca do muito detestado George W. Bush, mas pela do afável e socialista Hollande – leva de novo a falar de guerra. O que se irá passar? Não faço ideia. Mas de uma coisa estou certo. Os mesmos impasses, as mesmas dificuldades em ouvir a argumentação do outro, até as mesmas rupturas nos afectos, repetir-se-ão. Muita coisa mudou – mas, no fundo, nada mudou.

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