De Dominique de Villepin a Ana Gomes, a nossa querida especialista nacional no desporto da não-subtileza, não faltou gente para pôr nas nossas sociedades a culpa pelos atentados de Paris. No fundo, os terroristas não passam de criancinhas de que não soubemos cuidar devidamente. Como sempre, a culpa é dos pais, isto é, da sociedade. Que tão grandes génios sejam incapazes de pensar de outro modo que não seja pela mais barata cartilha sociológica só pode surpreender quem andar mesmo muito distraído.

Mas disto já falaram, e bem, várias pessoas, tal como dos muitos “mas…” que se ouviram logo a seguir ao atentado. “Sou a favor da liberdade de expressão, mas…” – e a seguir vem qualquer cláusula que impõe limites. Bom, qualquer pessoa que pense pensa com “mas…”, senão não pensa, o problema é quais são os “mas…”. E neste caso são maus “mas…”. São “mas…” que vêm do medo, sem dúvida, que dita um nunca visto respeito pelas outras culturas. Não duvidemos por um só instante que não fosse o medo esse respeitinho completamente fingido não existia. Mas vêm também da rejeição daquilo que se afirma como singular, da individualidade.

Essa rejeição é um factor potente nos “mas…” que se ouviram, tal como nas explicações “sociológicas”. No primeiro caso teme-se literalmente a liberdade que faz os indivíduos. Se alguns dos desenhos do Charlie tinham graça era exactamente porque exibiam uma liberdade que reflectia a individualidade do autor. No segundo caso, também é a individualidade que se nega, na medida em que se reduz os terroristas a puros produtos da nossa sociedade, sem vontade autónoma. Dir-se-ia que há muita gente que não gosta de indivíduos. Os terroristas certamente não gostam. Os que acham que a sociedade é inteiramente responsável pelas acções de cada um e aqueles que têm medo de tudo aquilo que se distingue do fundo comum – que individualiza, precisamente – parece que também não.

E, no entanto, se há coisa de que a cultura ocidental se pode gabar é de ter criado, através das várias artes, representações de indivíduos. A literatura fez isso desde o princípio, desde Homero, e a história do romance é indissociável da história dos personagens criados, que, nalguns casos, nos parecem quase mais reais do que grande parte das pessoas que nos rodeiam. E que dizer da pintura? Sobretudo a partir do Renascimento, e particularmente dos pintores flamengos do século XV, como Robert Campin ou Jan van Eick, a arte do retrato dá-nos a ver rostos absolutamente singulares que revelam uma individualidade única. Isto para não falar dos auto-retratos de Dürer, Rembrandt ou Van Gogh.

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Alguma da melhor fotografia também o faz. Falo da fotografia por razões óbvias e porque dei comigo nestes dias a olhar para mais livros de fotografia do que de costume. Dois exemplos. O primeiro, o do grande fotógrafo alemão August Sander, que, a partir da terceira década do século passado, iniciou uma série de fotografias sobre “Pessoas do século XX”. O mistério do olhar de toda aquela gente anónima é o mistério da individualidade, do que é uma vida, do que foi uma vida antes de a morte a abraçar. É impossível vermos as fotografias de Sander sem nos pormos a pensar como foi – o que foi – a vida daquele clérigo protestante ou daquela mãe sentada num jardim com um bebé. O olhar atravessa a noite do mundo, já inscrita naqueles rostos, para as tentar compreender.

A expressão “noite do mundo” é de Hegel. Aparece num fragmento de juventude onde se lê (não cito literalmente, porque o texto tem uma sintaxe esquisitíssima) que cada ser humano é uma noite que, na sua simplicidade, contém em si uma multiplicidade de imagens, de representações. São representações fantasmagóricas: aqui uma cabeça sangrenta, ali uma figura branca. Apercebemo-nos dessa noite quando olhamos um homem nos seus olhos: olhamos então uma noite que se torna temível, avança sobre nós a noite do mundo.

Por acaso, o que Hegel diz aplica-se até mais – não com mais profundidade, mas mais explicitamente, creio – ao segundo fotógrafo cujos retratos me têm acompanhado nos últimos tempos: Jorge Molder. Ou, antes, auto-retratos, embora a palavra não convenha muito bem. Há neles algo de fantasmagórico, uma multiplicidade de representações, incoincidentes entre si, do mesmo indivíduo. Nenhuma das representações convém perfeitamente, mas cada uma aponta para o mesmo mistério da existência individual. Também aqui, como nas fotografias de Sander, embora de um modo completamente distinto, avança sobre nós a noite do mundo.

Esta excursão pelas artes foi propositada. Porque elas revelam melhor do que tudo o resto o que é constitutivo do que há de melhor na tradição das nossas sociedades: a figura do indivíduo. E porque é essa figura que o integrismo islâmico quer obliterar. Há sem dúvida muitas razões culturais e religiosas para os recentes ataques, mas o ódio ao indivíduo é uma razão particularmente poderosa. Basta pensar nas imagens de gente sem rosto que nos chegam dos lados onde aquele radicalismo vence. Já sabemos que vária gente entre nós está mais ou menos disposta a pactuar. O que não tem muito que surpreender. Afinal de contas, as vocações totalitárias – ou, mais modestamente, o servilismo perante os autoritarismos – gozaram de uma conhecida fortuna por estas bandas.