Acerca do seu novo livro, diz José Sócrates que não é sobre ele, embora diga que é dele. Mas o carisma, tema do livro, foi uma palavra várias vezes aplicada ao antigo primeiro-ministro. Devo dizer que nunca a achei apropriada. Não é que o homem não tenha um feitio, porque tem; e não é que não tenha qualidades de direcção, organização e apresentação, porque também tem. Mas a ideia de carisma, no sentido com que corre na política contemporânea, sempre me pareceu desnecessária para explicar Sócrates.

Sócrates foi primeiro-ministro num país onde o Estado tem a mão em tudo e gasta o equivalente a cerca de 50% do PIB. Qualquer chefe de governo determinado em usar os seus recursos até às últimas consequências, e com vários anos para o fazer, acaba por emitir um certo magnetismo pessoal. Como podia ser de outra maneira? É o homem que tudo pode facilitar ou vetar. Para muita gente em Portugal, há um deus na terra, que vive ao pé do bairro da Estrela.

Precisamente por isso, Ronald Syme sempre me pareceu mais interessante do que Max Weber para entender Sócrates. Syme, um dos maiores historiadores da Roma antiga, nunca acreditou no carisma para explicar o imperador Augusto. Em vez disso, estudou o seu uso dos meios financeiros, a colocação de pessoas, a manipulação de processos. Demonstrou que não era preciso supor encantos pessoais para perceber como Augusto chegou a dominar a república romana.

A história de Sócrates precisa de um Ronald Syme: alguém que determine o seu uso do Estado e procure as conexões por ele estabelecidas com outros poderes — económico, mediático e judicial –, para ganhar ascendente sobre a vida pública portuguesa. Mas não terá havido ninguém que tivesse aderido ao culto socrático simplesmente arrastado pela sedução do “homem forte e providencial”? É possível que tenha havido. Mas pelo que vai constando sobre alguns dos entusiastas do poder socrático, a irresistível atracção pela personalidade do líder terá pesado menos do que as compensações materiais, incluindo, em alguns casos, pagamentos directos, embora dissimulados. O carisma de Sócrates foi mais uma das coisas que terá alegadamente ficado cara ao empresário que lhe pagava as despesas. Tal como a “popularidade” que o reelegeu em 2009 nos ficou cara a todos nós, com um défice de 9,8% do PIB em 2009 e de 11,2% em 2010.

Por esta via, o caso José Sócrates continua a contaminar quase todas as dimensões da vida pública. A história socrática já pôs em causa profissionais do jornalismo, da academia, do desporto ou da blogosfera, como venais ou dependentes. Não pretendo aqui fazer de justiceiro. Quero admitir que para cada caso possa haver outras explicações. Mas é essas explicações que não temos. De facto, o mais inquietante desta novela socrática é o aparente estado de negação ou de simples indiferença daqueles que a investigação vai assinalando, bem como das instituições e empresas que os enquadram. Alguns não disseram nada, outros disseram alguma coisa mas acharam que não tinham de aceitar perguntas, e outros ainda terão admitido os factos perante as autoridades, para depois encolherem os ombros e prosseguirem, como se nada disto pudesse afectar a sua honra e a sua probidade. Mas, justa ou injustamente, a investigação expô-los à suspeita de terem traído os códigos de conduta das suas profissões e de não merecerem confiança. Por isso, deveriam ser os primeiros a querer falar e responder a perguntas. Não são. O que dizer de uma sociedade onde ignorar a acusação continua a ser a melhor forma de defesa?

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