Há umas semanas, as redes sociais começaram a fervilhar com as primeiras notícias de que Pedro Passos Coelho se ia dedicar à vida académica. Na altura, não reagi. Parecia-me óbvio que quem noticiava não fazia ideia do que é a vida académica. E, na verdade, as notícias deixavam bem claro que não era disso que se tratava ao dizerem que PPC ia dar aulas em três universidades. Como é razoavelmente evidente, mesmo para quem está desligado da vida universitária, alguém que se dedicasse depois dos 50 anos à vida académica não teria tempo para dar aulas em três universidades. Na verdade, até seria mais razoável não dar em nenhuma. Teria de fazer o doutoramento o quanto antes e isso é trabalho, a tempo inteiro, para 4 ou 5 anos.

Há poucas semanas, ficámos a conhecer uma dessas três universidades. Ainda nada sabemos quanto às outras duas. O ISCSP — Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa — vai contratar PPC como professor catedrático convidado. As redes sociais fervilharam de indignação. Como eu estava em viagem, fiquei sem perceber se a indignação se circunscrevia às redes sociais ou se se estendia ao país inteiro, mas, no meu mural do Facebook, disseram-me que era coisa de redes sociais. O país estava mais preocupado com o tempo que fazia. Fiquei descansado e dispensei-me de escrever sobre este assunto. Afinal, havia temas bem mais importantes.

Eis senão quando descubro que parte do país perdeu completamente o tino e a compostura. Começou com um abaixo-assinado de uns alunos do ISCSP, manifestando-se contra a contratação de PPC. (Por falar nisso, senhores jornalistas, dar notícias sobre abaixo-assinados sem revelar quantos assinaram não é informar, é fazer propaganda.) Nesse documento, os alunos explicam que quem “nunca leccionou, nunca preparou uma tese na sua vida, nunca trabalhou em investigação e nunca teve um percurso académico minimamente relevante” dificilmente será capaz de “preparar alunos de mestrado e doutoramento”. Acrescentam ainda que “o salário obsceno do novo docente (tendo em conta a sua formação académica), equiparado ao de um professor catedrático, é uma ofensa grave à meritocracia inerente ao percurso académico normal de um docente universitário”. Estes argumentos, tão aplaudidos por alguns, são tão disparatados que uma pessoa até tem dificuldades em responder sem se limitar a dizer o óbvio.

Na maioria dos cursos, um estudante terá por ano qualquer coisa como 8 a 12 disciplinas. Obviamente, essas disciplinas todas não podem ser leccionadas apenas por pessoas sem qualificações académicas avançadas. Caso contrário, em vez de se fazer um curso em engenharia mecânica, mais valia ir estagiar para uma oficina. Mas ter apenas professores puramente académicos também é empobrecedor. A figura do docente convidado serve, também, para trazer um pouco do mundo exterior para dentro da universidade. Obviamente que com conta, peso e medida. Por exemplo, na Universidade do Minho, o actual Reitor, Rui Vieira de Castro, tem como meta que 10% das disciplinas sejam dadas por convidados. Numa academia a sério, há lugar para todos os saberes.

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A ideia de que alguém deve ter um percurso académico para ser convidado é um total disparate. Se eu contratasse Passos Coelho para dar aulas na minha escola e descobrisse que ele andava a dar matérias que tivesse estudado num qualquer mestrado ou doutoramento, despedia-o imediatamente. Para isso, já tinha à disposição mais de 80 professores doutorados, que fizeram do estudo a sua carreira. De um ex-primeiro-ministro, eu esperaria um relato tão vivo, pessoal e detalhado quanto possível do que foi o seu mandato, em especial se esse mandato coincidisse com um dos períodos mais difíceis da nossa história recente.

No último ano do meu curso em Coimbra, Mário Soares foi contratado como professor catedrático convidado. A disciplina chamava-se Grande Seminário (se a memória não me falha) e fazia parte do currículo dos alunos de Relações Internacionais. Os de Economia, como eu, podiam apenas assistir. Mário Soares dava uma aula por mês. As outras aulas eram asseguradas pelos professores da casa. Como imaginam, de Soares o que tivemos foram (belas) histórias com o Yasser Arafat, o François Mitterrand, Henry Kissinger e muitos outros.

O outro argumento dos alunos do ISCSP é o salário obsceno de catedrático que Passos Coelho vai receber. Vamos com calma! Em primeiro lugar, é verdade que os catedráticos têm um bom salário. Um Catedrático em exclusividade ganha entre 4.665€ (1º escalão) e 5.400€ (4º escalão). Mas um convidado, evidentemente, não recebe como se estivesse em exclusividade. Recebe apenas uma percentagem do salário base do catedrático que não esteja em exclusividade. Esse salário é de 3100€. Se PPC for contratado a 50%, o seu salário bruto será de 1550€. Se for a 30%, então receberá pouco mais de 900€. Ou seja, muito provavelmente (e digo provavelmente porque os detalhes ainda não são públicos), o seu ordenado líquido andará entre os 700 e os 1.100€. É uma questão de opinião, claro, mas não considero obsceno.

Há uns dias, a questão deixou de ser um problema das redes sociais e de um número indeterminado de alunos e passou verdadeiramente para a academia. Entre professores e investigadores, houve um total de 28 académicos que lançaram uma petição, aberta a não-académicos que, no momento em que escrevo, conta com 1500 assinaturas no total. Na sua argumentação, não cometem os erros infantis dos estudantes revoltados, mas, mesmo assim, não concordo com a petição e estou totalmente convencido de que o problema só existe porque se trata de Passos Coelho.

A petição começa de forma um pouco sonsa. Depois de no segundo parágrafo dizer que a contratação não constitui uma ilegalidade, logo no terceiro diz que “a atribuição do grau de catedrático a Pedro Passos Coelho (…) constitui um atropelo flagrante ao estatuto da carreira docente universitária em Portugal”. A bem dizer, ou é um atropelo flagrante à lei ou não é ilegal. As duas coisas juntas não dá. Mas adiante.

Os signatários invocam o Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU) para contestarem não a contratação de Pedro Passos Coelho, mas sim a sua contratação como Professor Catedrático. De acordo com o ECDU, um professor catedrático tem funções de coordenação de disciplinas, de cursos, de regência de disciplinas, direcção de aulas práticas, coordenação, etc.

Os signatários consideram que Pedro Passos Coelho “não evidencia formação científica ou pedagógica que o habilite” para este tipo de funções. Eu, confesso, também não imagino Mário Soares a coordenar disciplinas, programas de estudo, corrigir e avaliar trabalhos, ou, na verdade, a fazer mais do que dar as quatro aulas que dava por semestre. Mas aquilo que eu imagino, bem como aquilo em que os signatários acreditam, é irrelevante. Quem tem competência para avaliar isso, como está bem claro no ECDU, é o Conselho Científico.

Olhando para o ECDU, artigo 15º, lê-se que os professores convidados são recrutados entre pessoas com “reconhecida competência científica, pedagógica e ou profissional na área ou áreas disciplinares em causa”. A não ser que se considere que ser primeiro-ministro não tem nada a ver com a área de Administração Pública ou de Políticas Públicas, não vejo como alegar que Passos Coelho não cumpre este requisito. Se vai ser um bom professor ou não, é coisa para se perguntar aos seus alunos daqui a um ano.

Basta procurar no Diário da República para ver que há dezenas (senão centenas) de nomeações de Professores Catedráticos Convidados. Logo no ISCSP, encontramos dois ex-ministros (Luís Amado e Paulo Macedo), além de lá estar António José Seguro (este como Auxiliar convidado). Não consigo, de todo, entender como se argumentar que a contratação de PPC é um atropelo ao ECDU.

É no último ponto da petição dos 28 que se percebe a indignação dos signatários, que “consideram a presente nomeação duplamente ofensiva num momento em que milhares de investigadores e docentes com vínculo precário, cujo trabalho sustenta o regular funcionamento de tantas universidades em Portugal, se manifestam para que a mais elementar justiça seja observada no programa de regularização de precários no Estado”. E, mais à frente, acrescentam: “os abaixo-assinados expressam o seu repúdio pela política do facto consumado que pretende eternizar o precariado à luz de princípios lesivos dos interesses nacionais, e de um equívoco valor de “mérito” que promove contratações extemporâneas e de contornos opacos enquanto se serve do trabalho quotidiano de tantos investigadores e docentes em situação precária, nunca reconhecendo o seu direito a uma carreira.”

Os signatários têm muita razão nestas queixas. A forma como as universidades mantêm tantos investigadores de carreira com vínculos precários, com o estatuto de bolseiros ou de convidados (e muitas vezes “apenas” como assistentes convidados) é que é uma exploração inadmissível de mão-de-obra altamente qualificada a preços de saldo. E, se os governos têm culpa, as universidades também têm ao definirem cargas horárias para estes docentes muito mais penalizadoras que para os professores no quadro. Por exemplo, em muitas universidades, um convidado a 50% dá tantas aulas como um professor em regime de exclusividade.

Estando ligados, são assuntos diferentes. Passos Coelho não vai passar à frente de ninguém na carreira académica, pela simples razão de que não tem uma carreira académica. Vai ter contrato a termo certo, no máximo de um ano, e, provavelmente, a 30 ou 50%. A figura de convidado serve, precisamente, para casos como este, para trazer pessoas de fora da academia para dentro dos muros universitários, e não para pessoas que querem seguir carreira académica. Não vou dizer que por ter sido primeiro-ministro teria de ser catedrático; afinal, Pinto Balsemão também o foi e trabalhou como Professor Associado convidado na FCSH da Universidade Nova. Mas uma coisa é dizer que não é obrigatório ele ser catedrático convidado, outra coisa bem diferente é dizer que é um escândalo. Há centenas de ex-ministros e ex-secretários de Estado, milhares de directores e ex-directores de qualquer coisa e muita gente com carreiras profissionais de grande mérito. Mas os dedos das mãos sobram para contar os ex-primeiros-ministros ainda vivos em Portugal.

P.S. Gostaria que não houvesse qualquer dúvida de que não questiono a competência e as qualificações de nenhum dos professores convidados referidos nesta crónica. Apenas tive a oportunidade de assistir às aulas de Mário Soares e posso garantir que (quase) todos os estudantes deram por muito bem empregue o seu tempo.