1 – Passam estes dias seiscentos anos sobre a conquista de Ceuta. D. João I, mil, quatrocentos e quinze. Ceuta abriu a porta do Império. Seguiram-se muitas Ceutas, estive em algumas e lembro-me. Mas após tantas deambulações e sabendo como é sempre um exercício delicado soltar a memória por aí fora, sem rédea nem rede, socorro-me de notas tomadas nas sete partidas.
E mesmo que elas fiquem aquém da vertigem e da fortuna da viagem, ou mesmo que historiadores iluminem obviamente bem melhor que eu o passado e a História, é-me impossível, nesta data, não ir ter com tanto Portugal tão longe.
2 – Começo pelo principio. Calhou-me em sorte a luz do sul que logo me predispôs para a transparência dos lugares, o claro relevo das paisagens, a nitidez do perfil da pedra tingida pelo sol, a superfície liquida de mares e rios, a planura das areias, a rota do calor, a exuberância dos verdes, o cheiro quente da terra, os embondeiros, as palmeiras e as mangueiras, corpos mais nus que vestidos, dias mais longos, noites mais breves. O Atlântico e o Índico. E por sobre tudo isso, céus sempre mais estrelados que quaisquer outros céus.
Foi pelo sul que abri a descoberta do que resta do Império, pelo sul que caminhei, numa sucessão de moradas, cobertas quase todas elas de uma derisória nostalgia. Como se já lá estivesse estado, como se conhecesse tudo, como se de cada vez ocorresse um singular reencontro com tais lugares onde nunca fora, mas parece que tão bem conhecia.
3 – Fui pelas savanas de África e pelos morros do Brasil e pelos cheiros da Índia. Fui e encontrei a altaneira torre portuguesa da branca Azilá, à beira de Marrocos; vislumbrei uma praia com sete ondas em S. Tomé e conheci a solidão sem limite da ilha do Príncipe; descobri a lendária Ajudá no escondido Benim, e mais abaixo a cidade de S. Paulo de Luanda, na orla do Atlântico sul; do outro lado de África vi a incomparável dimensão do Forte de Jesus, em Mombaça: e ainda no Índico, curvei-me em Quiloa, nessa já orientalizada África que é a Tanzânia, perante a memória de D. Francisco de Almeida que lá levantou pedras em nome de Portugal e consta que nasceu fortificação em apenas vinte e três dias; parti em busca do ruído alucinante de Bombaim, essa prenda de Portugal aos ingleses por mor de um casamento real; fui atrás das quietas águas de Cochim onde morreu Vasco da Gama e dos arrozais de Goa, entrecortados ao longe pela mancha das brancas igrejas, há sempre brancas igrejas ao longe de Goa; procurei a cidade espraiada de Malaca onde está a impressiva Famosa, que é nome de Fortaleza; entristeci sob o crepúsculo de Dakha nesse desolado Bangladesh e inebriei-me com a noite tão quente de Banguecoque. A seguir, rumei a ocidente deste sul e andei por vários Brasis. Cada um deles com a sua especifica geografia e uma identidade própria mas todos unidos pelo denominador comum da língua que é a nossa. E mais adiante, aportei à Colónia do Sacramento, florida de ibiscos e banhada por esse rio de enganos que é o Rio da Prata, um pedaço do Uruguai que mais se assemelha afinal nas suas linhas, a um perdido canto de Portugal.
Parti sempre em busca da nossa impressão digital e das atmosferas que a envolveram e em todo o lado a encontrei. Fui onde me levaram esses sinais, marcas e marcos; parti cinco séculos depois, passageira dessas mesmas caravelas de tão estranho desígnio, dos portugueses das sete partidas.
Parti dez vezes, vinte vezes e todas as vezes descendo a sul com predisposição para, revisitando o passado, o tonificar desta feita com um olhar novo, livre, liberto. Parti “mandatada” pela Fundação Gulbenkian para reportar a recuperação do património português que a Fundação, a pedido das autoridades locais, ia levando a cabo por esse mundo fora: revitalizando pedras de torres e fortes, refazendo arquivos e altares, reconstruindo murais, bibliotecas e igrejas. Calhou-me a mim – incrível privilégio e incrível sorte! – ser a contadora de tais feitos, e lá se fez registo com o feixe das impressões colhidas nessas Sete Partidas (e hoje publicadas em livro).
Inventário e repositório do que lá vi, tanto Portugal tão longe.
4 – Vi gente em Malaca que misteriosamente persiste hoje em rezar, falar ou cantar na nossa língua, e que também aprecia cozinhar em português. E quando espantada lhes perguntei porquê, responderam-me com Afonso de Albuquerque como se ele estivesse ali à mesa, sentado connosco, e soletraram-me a data de 1511;
Vi na Igreja do Santo Rosário, em Daka, capital do improvável Bangladesh, imagens e ornamentos religiosos levados de Macau ou da Índia, por mãos que só podiam ser lusas;
vi grandes arquivos impressos na minha língua, no Paço Episcopal de Cochim, amorosamente guardados pelo seu Bispo – entretanto hoje já falecido – D. José Kurethera, grande amigo de Portugal e conhecedor como poucos da nossa História que, com o rigor e o saber do guardião, me conduziu por entre armários, gavetas e prateleiras, afogadas em História;
vi em S. Luis, terra do Maranhão, no Brasil, um grande mural representando o Terreiro Paço antes do terramoto de 1755; no Estado de Minas Gerais, vi Ouro Preto, preciosa jóia branca decalcada de cidades nossas – mas foi, recordo-me bem, na açoriana Angra do Heroísmo que pensei; e no Rio, no Real Gabinete de Leitura, vi a formidável biblioteca que lá deixou D. João VI ou a impressivíssima talha doirada, estonteantemente barroca, dos altares do Mosteiro beneditino de S. Bento do Rio, quase cópia da nossa Madre de Deus, com as suas obras primas de ourivesaria;
vi as ossadas de alguns religiosos portugueses na Tailandesa Ayuttháya, agora já cuidadosamente acondicionadas em digna morada à beira da Igreja de S. Domingos, templo erguido em 1566, por dois sacerdotes portugueses.
Em todas as partes ouvi muito falar deste ocidental canto da Europa de onde somos e onde pertencemos: em Mombaça, em Ajudá ou na Malásia e, por todo o lado, vi anónimos Baptistas, Fernandes, Silvas e Sousas, inscritos na frieza de pedras tumulares. Vi, na sexta-feira da Paixão de uma Páscoa que jamais esquecerei, milhares e milhares de fiéis em procissão atrás da Confraria da Rainha do Rosário, fundada nos idos de seiscentos, na Ilha das Flores, da remotíssima Indonésia. Cantava-se o Avé de Fátima e havia velas acesas e lágrimas como em Fátima. Por qualquer misteriosíssima razão esses fiéis insistem em manter intactos alguns dos nossos rituais e costumes e ainda usam hoje, na linguagem corrente da pequena ilha, muitos vocábulos da nossa língua. Ouvi suplicar bolsas de estudo para aprender português em Portugal, de todos os lados do mundo me pediram livros, discos, receitas de cozinha, letras e músicas do nosso folclore, notícias do Benfica; e há muito anos escutei um ministro em Moçambique a insistir em que Portugal lá reconstruísse a mágica Ilha do mesmo nome. Por todo o lado enfim, deparei com gente a reclamar-se naturalmente de uma herança, um património e um passado que bem vistas as coisas, só parece afinal embaraçar-nos hoje a nós. Aos de aqui, de cá de dentro. Ou manifestamente a alguns deles.
5 – As vezes perguntam-me: de que gostou mais? Impossível escolher um só lugar, eleger apenas um, entre outros. Em África fui africana, no Brasil, brasileira, e por aí fora… Mas finalmente talvez haja uma coisa que perdura e insistentemente permanece comigo, agora que o tempo sedimentou descobertas e filtrou emoções e que foi a ideia de que fomos melhor do que aquilo que pensamos que fomos.
O século XVI foi português, Portugal esteve, para o bem e para o mal, em todas as lonjuras da carta do mundo. Ter podido aperceber-me de tal feito, tê-lo visto com os meus próprios olhos em cada bocado do solo dessas lonjuras, eis o que constitui sem sombra de dúvida um presente que a vida me deu.
Vivi tudo isto não como uma série de viagens, mas como quem vive um destino ou celebra um dom. Voltei, revi, revivi. Estive onde o país esteve.
Mas depois, de cada vez, regressava sempre com o mesmo alvoroçado espanto: como fora possível?