Era possível derrotar Fernando Medina em Lisboa? Creio que sim, se PSD e CDS se tivessem entendido. Com ou sem candidatura de Cristas. Mas como esta não é a primeira vez que, na capital, a direita, e o PSD em particular, correm para perder, não creio que esse seja o maior problema de Passos.
O maior problema de Passos é que, mesmo depois dos difíceis anos de ajustamento, o país não dá sinais de ter entendido a necessidade de reformas e ele, tal como o PSD (e o CDS), parecem ter-se resignado a isso. Por isso não tem um discurso político mais coerente e mais mobilizador. Pode ter toda a razão do mundo quando denuncia os truques orçamentais do Governo (e tem), mas isso é pouco. Pode ir aproveitando as diferentes trapalhadas da geringonça, mas isso também é pouco, é politiquinha que só mobiliza os activistas. Pode (e até deve) continuar a avisar para os perigos do rumo que está a ser seguido, mas continua a ser muito pouco e muito deprimente. Pior: tudo somado é sempre poucochinho.
Dir-se-á: podia ser diferente? A meu ver podia, e não apenas fazendo “mais política”, como recomendam os comentadores que adoram a intriga, a manobra e o jogo de enganos. Mas exigia outra forma de olhar para o país e de fazer política. Uma capacidade para dizer sem rodeios que Portugal nunca irá a lado nenhum enquanto não sair deste atavismo que mistura o corporativismo que vem do Estado Novo com o socialismo “constitucional”, essa sopa pastosa em que nos movemos e que nunca ninguém verdadeiramente desafiou.
Reconheço que não é fácil. Em Portugal o maior partido, como costuma referir Medina Carreira, é o “partido Estado”, pois dele dependem seis milhões de pensionistas, funcionários públicos e respectivas famílias. Com uma demografia desfavorável e um eleitorado receoso de mudanças, a vantagem é sempre dos conservadorismos enquistados. Daí o sucesso das “reversões”, esse regresso ao status quo e aos “direitos adquiridos”. Daí a dificuldade de encontrar um discurso de mudança que não tenha como contraponto os papões e os fantasmas de sempre, centrados na defesa (ou mesmo expansão) de um Estado Social intocável mesmo que com crescentes dificuldades de financiamento.
Em boa parte foi esse país que soube resistir às reformas dos últimos anos – resistiu na rua e nas empresas mobilizado pelo PCP, resistiu nas televisões pela voz dos “senadores” com lugar cativo, resistiu nas instituições, com destaque para o Tribunal Constitucional. Resistiu sobretudo no discurso dominante, repetido à exaustão pela generalidade da comunicação social.
Reconheço também que é tentador continuar a fazer a política do costume. É mais fácil fazer um discurso sobre os balcões que vão fechar da Caixa Geral de Depósitos do que assumir que o banco público tem de ser gerido como um banco privado. Ou mesmo interrogar-se sobre o porquê de um banco público que andou a financiar as megalomanias dos governos (e assim cavou o buraco que os contribuintes vão agora ser chamados a tapar) e que, afinal, só tinha 7% da sua carteira de crédito nas PME’s. Assim como é mais difícil contestar as benesses que a Carris municipalizada anda a prometer aos lisboetas (sem dizer como as vai financiar) do que criar um problema político suscitando a contestação dos concelhos em redor de Lisboa.
Acontece porém que assim não se vai a lado nenhum. E só se irá a algum lado quando se mudar o discurso e se começar a defender, de forma coerente, sistemática, teimosa, uma agenda política que defenda mais liberdade, mais iniciativa e mais responsabilidade. Quando se insistir que o Estado tem poder a mais em Portugal – manda demais, regulamenta demais, intromete-se demais, protege demais e protege mal (pois não protege apenas os necessitados, protege também os poderosos quando estão aflitos). Quando se disser que o problema do Estado não é ter burocracia a mais (para isso servem os simplexes deste mundo), mas ter o poder de se intrometer em quase todos os domínios da nossa vida, e na vida das nossas empresas. Quando se disser que uma sociedade comparativamente pobre, como é a portuguesa no quadro da União Europeia, não pode pagar tantos impostos e tantas contribuições, que a escolha é entre devolver dinheiro aos cidadãos e às empresas ou devolver dinheiro aos funcionários públicos e às corporações. Quando se assumir que a reforma do Estado é para acabar com muitas das suas funções tentaculares, com muitos dos seus privilégios (4,5 funcionários por cada chefe na Direção-Geral da Segurança Social? “Benefício adicional de mais 12 dias anuais de não trabalho”?) e com todas aquelas regras que permitem aos funcionários agir discricionariamente, preconceituosamente.
Os hospitais EPE acumulam dívidas? O Serviço Nacional de Saúde tem cada vez mais dificuldade em conter o crescimento das suas despesas? Então em vez de denunciar apenas as dívidas é preciso começar a dizer que chegou o momento de rever o modelo de financiamento de todo o sistema de saúde, até para os cidadãos (que já suportam um terço das despesas com saúde) terem noção de que não é tudo grátis.
As escolas públicas continuam prisioneiras da Fenprof? Então é chegado o momento de assumir que isso só sucede porque a 5 de Outubro tem poder a mais, da colocação de professores à definição dos detalhes da rede escolar, e as famílias têm poder a menos, pois estão condenadas (as mais pobres) a ter os seus filhos na escola que o Estado escolhe e não naquela onde gostariam de os colocar.
Não há esperança para Portugal – sobretudo não há esperança para os que em Portugal têm menos de 40 anos – enquanto estivermos presos na redoma de uma economia que não cresce porque esbarra em regulamentos ou desespera perante a ineficácia da Justiça, enquanto o Estado consumir mais de 40% dos recursos nacionais (em 2016 consumiu mais de 45%), enquanto a cultura dominante for a de nos encostarmos (cidadãos e empresas) ao Terreiro do Paço em vez de fazermos pela vida, com os altos e baixos que isso implica.
A grande derrota dos anos da troika não foi ter ficado aquém das metas orçamentais – foi ter perdido (até por falta de comparência) a batalha das ideias, um debate que não é entre austeritários e anti-austeritários, mas entre reformistas e imobilistas, entre liberais e estatistas, entre modernizadores e conservadores.
O grande equívoco da anterior maioria é não entender que, apesar do “partido Estado”, há ao mesmo tempo um solo fértil para defender ideias como a de devemos devolver poder aos cidadãos, para lhes dizer que podem ter mais liberdade nas suas opções, para acrescentar que isso implica terem mais responsabilidade e assumirem as consequências. Num país que não está feito para os mais novos estes não estão condenados a ficar reféns de ideias velhas, como as da precariedade, antes podem abraçar ideias novos, como as de risco e oportunidade.
É aqui que está o real drama de Passos Coelho – dele e de todos os que em Portugal não são da esquerda situacionista. Um drama que começa num ambiente cultural, social, demográfico, comunicacional hostil, mas que é ainda maior se pensarmos que se desistiu da luta de ideias e se procura vencer eleições apenas com base no “pragmatismo” e no “realismo” das promessas.
“Raciocínios e ideias, isso interessa-me”, diz a certa altura Meryl Streep no papel de Margaret Thatcher no filme “A Dama de Ferro”. Isso mesmo, porque “um líder é alguém que sabe o que quer alcançar e consegue comunicá-lo”. Infelizmente hoje pensa-se que o pragmatismo tem mais valor do que as ideias, que ter ideias é ter “obsessões ideológicas” (de resto só se pode ter obsessões ideológicas de esquerda, pois essas não são “obsessões”), que pensar a política já não é um domínio de escolhas difíceis e que, afinal, os recursos não são escassos.
Enquanto em Portugal se tiver medo de discutir ideias, enquanto se ficar aterrorizado apenas com a perspectiva de que defender menos Estado tentacular é permitir que a esquerda salte logo com acusações de que se está a defender interesses privados, o debate público estará sempre inquinado por aquilo a que um dia Raymond Aron chamou “sinistrismo”, isto é, estaremos mergulhados numa cultura política onde um dos lados tem sempre razão e o outro tem sempre pecados.
John Maynard Keynes escreveu um dia que “as ideias dos economistas e dos cientistas políticos são mais poderosas do se julga: na verdade, o mundo é governado por elas”. O seu amigo, mas feroz rival intelectual, Friedrich Hayek, foi porventura mais longe ao advogar que era necessário, para combater a influência intelectual do socialismo, “ser capaz de oferecer um novo programa liberal que apele à imaginação”, que era necessário “fazer com que a construção de uma sociedade livre seja de novo uma aventura intelectual, um gesto de coragem”. Por isso mesmo estaria entre os fundadores da Mont Pelerin Society.
Por tudo isto a luta de ideias é boa e não má. Não a travar em Portugal, resignando-se à derrota sofrida no período do ajustamento, é condenar o país a nova derrota quando chegar um novo ajustamento – até porque sem uma mudança de mentalidades, que só será possível defendendo outras soluções e outras políticas, conseguiremos deixar de ir deslizando, cantando e rindo, consumindo e relaxando, a caminho de um novo desastre.
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