Logo que o PSD e o CDS se atreveram a estranhar a desenvoltura com que António Costa resolveu a derrota eleitoral do PS, a sabedoria nacional precipitou-se a exigir calma e a recomendar terapêuticas. A “direita” estava “nervosa”. Mas bastou o presidente da república promover audiências e exigir garantias, para descobrirmos quem é que de facto anda nervoso. Costa anteviu logo uma “crise política artificial”. Jerónimo de Sousa foi mais claro e ameaçou com a “resposta democrática” dos “trabalhadores”. O jogo ficou à mostra.

Vamos a ver: nunca houve regras que não tivessem sido aceites por António Costa. Foi Costa quem lembrou, de acordo com a tradição, que o partido mais votado teria prioridade em formar governo. Foi Costa quem jurou que nunca se proporia governar sem um acordo firme e à frente de uma maioria “positiva”. Depois, perdeu as eleições, mas exigiu ser o primeiro indigitado. Depois, só arranjou três “posições conjuntas”, mas propõe-se formar governo. Em qualquer país do mundo, excepto talvez na Venezuela, seria admissível ter “dúvidas”. Dúvidas sobre a autoridade de um primeiro-ministro derrotado nas eleições. Dúvidas sobre a consistência de uma governação dependente do logo-se-vê parlamentar. Mas aqui, não. Aqui, é preciso engolir tudo sem piscar os olhos.

Costa atropelou as praxes e torceu o regime. Começou por diminuir as eleições, ao submeter os seus resultados às manobras parlamentares. Depois, tentou tratar o presidente como um mero notário do parlamento, enquanto deixava os seus correligionários descer ao insulto (o “gangster”). A próxima vítima institucional de Costa será o governo, sujeito à tutela dos seus aliados parlamentares, num verdadeiro regime de assembleia. Os deputados governarão tanto como os ministros. Mas não temos o direito de comentar. Muito menos de criticar.

Tudo isto é extremamente curioso. Aqueles que não admitem se discuta a legitimidade (política) de Costa são os mesmos que, durante quatro anos, negaram a legitimidade de Passos Coelho. Aqueles que acharam inaceitável que os apoiantes de Passos aparecessem às 13h00 diante da Assembleia da República no dia da discussão do programa de governo, foram os mesmos que organizaram uma manifestação para as 15h00. Aqueles que censuram o PSD e o CDS pela indisponibilidade para amparar o governo minoritário do PS, são os mesmos que, antes das eleições, anunciaram que nunca votariam um orçamento da “direita”.

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Já sabíamos que só a esquerda pode governar em Portugal. Agora estamos a descobrir outra coisa: que também só a esquerda pode indignar-se e fazer oposição. Só o PS dispõe da prerrogativa de boicotar um governo, só o PCP tem o direito de marchar nas ruas, só ao BE é dado desfolhar o lado agressivo do dicionário.

E isso explica porque é que a oligarquia está tão ansiosa pela indigitação de Costa, ou, como os oligarcas mais excitados dizem, por ter finalmente um “governo a governar”. Não tem a ver com a constituição, nem com o parlamento, nem com as finanças ou os compromissos europeus. Tem a ver com outra coisa: com as greves, as manifestações, as rupturas, a agitação a que a “maioria de esquerda” não hesitaria em recorrer se não lhe entregarem o poder e for forçada a testar as suas “posições conjuntas” em eleições. Nenhum oligarca o diz, mas é nisso que pensam.

Esse é o lado mais insalubre da manobra de Costa: ao aliar-se com dois partidos que nunca renunciaram à “revolução” (isto é, à violência política), reintroduziu na vida pública, por enquanto como ameaça, aquilo a que na I República se chamava a “rua”. É por isso que temos de andar tão calmos: não vão eles zangar-se.