1. Posso começar com uma citação? Ao falar sobre a campanha eleitoral para a Assembleia da República, o secretário-geral do PCP chamou a atenção para as “duas direcções fundamentais da sua actuação”. Eram elas: “Por um lado, evitar uma maioria da direita […] CDS e PSD e, por outro lado, criar condições para uma maioria de esquerda”. “Temos insistido na necessidade do acordo dos socialistas”, esclareceu, porque senão “o PS vai aliar-se à direita, vai aliar-se ao PSD e talvez ao CDS”. Depois de conhecidos os resultados eleitorais, e perante o sucesso do seu duplo objetivo, defendeu, com convicção e esperança, que “haveria possibilidades para a formação de um governo de esquerda assente nessa [nova] maioria”.

Todas estas citações são, obviamente, de Álvaro Cunhal, que falava sobre as primeiras eleições legislativas da democracia, em 1976. Está tudo nas Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal — Tomo VI, 1976 (Edições Avante!). Quando, há um ano, na noite das legislativas, Jerónimo de Sousa foi o primeiro líder partidário a falar daquilo que viria a ser conhecido como “geringonça”, não estava a inventar a roda, nem a inventar o fogo, nem a inventar um novo capítulo da História das ideias políticas. Estava, simplesmente, a repetir aquilo que Álvaro Cunhal disse sempre.

A tese não tem muito que saber. Bastava que as “relações de força” se conjugassem com a precisão de um mapa astral: era preciso que os partidos “da esquerda” tivessem uma maior representação parlamentar do que os partidos “da direita”; era preciso que o PS ficasse dependente dos votos do PCP para chegar ao poder; e era preciso que os socialistas evitassem a sua histórica e horrível tendência para se juntarem à “direita” em momentos de aperto.

Tudo isso aconteceu em 2015. Ponto um: apesar de ter menos votos do que a direita, a esquerda junta tinha mais deputados. Ponto dois: o PS sozinho não conseguia chegar ao poder. Ponto três: os socialistas não se podiam aliar à direita porque, se o fizessem, seria sempre a direita a governar, uma vez que tinha tido mais votos. A única forma de António Costa se tornar primeiro-ministro era com o apoio do PCP (e do BE, claro, mas essa é outra história).

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Para dar o seu apoio a um governo do PS, os comunistas não tiveram que mudar, não tiveram que se transformar, nem tiveram que reinventar a sua História. Muito pelo contrário — isto é aquilo que o PCP sempre quis. Quem tiver dúvidas, pergunte a Álvaro Cunhal.

2. E, já que se fala em Cunhal, é também possível perguntar-lhe o que pensaria de tudo aquilo que Jerónimo de Sousa tem vindo a aceitar para manter a “geringonça”: os salários “milionários” da administração da Caixa, por exemplo, ou o ritmo lento de aumento do salário mínimo e das pensões, ou, pior ainda, o cumprimento das exigências financeiras de Bruxelas.

Cunhal pensaria que é mesmo assim, como é evidente. Até porque fez o mesmo. Logo em 1974, o secretário-geral do PCP pertenceu ao primeiro Governo provisório, como ministro sem pasta. As actas da época mostram que, nas reuniões do Conselho de Ministros lideradas por Adelino da Palma Carlos, Álvaro Cunhal era surpreendentemente moderado.

Em Junho de 1974, por exemplo, o ministro da Defesa, Firmino Miguel, levantou um problema delicado: o Exército queria vender munições ao Chile de Augusto Pinochet. De um lado estava a alta política: aquela transação iria ajudar um regime condenado por todos e com o qual Portugal até tinha cortado relações diplomáticas. Do outro lado estava a baixa contabilidade: a venda iria dar seis meses de trabalho na fábrica de armamentos portuguesa. Como resolver este terrível dilema? Pereira de Moura não hesitou: “Eu não posso votar senão contra”. Salgado Zenha também não: “Essa transacção com a nossa consciência terá um saldo largamente negativo”. Quando chegou a vez de Cunhal falar, começou por afirmar que “toda a demarcação” em relação ao regime de Pinochet era “importante”, mas, depois, assegurou “não querer ser mais papista do que o Papa”. E até ofereceu uma solução para o problema: “Tornar isto um contrato comercial vulgar”.

O PCP sabe muito bem — pelo menos desde 1974 — que não é possível apoiar um governo sem aceitar muitas, muitas (mas mesmo muitas) coisas com as quais discorda.

Quer isto dizer que o PCP de 2016 é igual ao PCP de 1974 e de 1976? Aqui fica a resposta breve a uma pergunta complexa: sim.