1. Lembro-me de quando o país gostava dele. Ou simpatizava: muito e abertamente. Eu incluída, (não me vou pôr agora a rever a História). Foi ao princípio e havia ali alguma coisa de pouco vista na política e pouco praticada pelos portugueses em geral mas que a mim me tocava em particular: energia, ousadia, persistência, uma démarche desenvolta e vontade – de fazer política, de fazer coisas, de conseguir fazer coisas, de reformar o país. Era quase contagiante. Visto à luz de hoje parece derisório e trágico e é evidentemente uma coisa e outra mas as coisas são o que foram.

Mais de metade da direita morria de amores por José Sócrates e a elite económica nacional ainda mais, mas seja qual for o desfecho não sei se ele apagará o longo estado de graça inicial de Sócrates. Nem a sedução com que muitíssima gente o olhou e se dispôs – de algum modo ou de todos os modos – a segui-lo (hoje tudo isto será expeditamente negado mas eu lembro-me bem de como foi assim).

Antes disso houvera aquela espécie de compromisso que então parecia politicamente perfeito, quando Sócrates e Costa decidiram fazer um pacto entre ambos e cumpri-lo, como fizeram e cumpriram: juraram um ao outro não repetir as estações de Via Sacra que haviam sido as sucessões nas lideranças do PS, Soares, Sampaios, Constâncios, Gamas e… simplesmente deixar à política a escolha sobre qual deles estaria mais bem colocado para atingir o patamar da liderança, quando chegasse a altura. Quando chegou a altura, era Sócrates quem estava na pole position. Avançou, ganhou.

Nunca mais me esqueci disto. Foi o próprio António Costa quem um dia, há muitos anos, sentado à mesa do restaurante “A Travessa”, me desfiou o pacto e os seus detalhes. A história era politicamente boa, contei-a num jornal. Longe estavam os governos de Sócrates e longíssima a autarquia de Lisboa de António Costa, mas eles já prometiam.

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Algum tempo depois, quando Guilherme Oliveira Martins teve de deixar um programa radiofónico do qual era autora e pivot, foi para Sócrates que me virei para o substituir. O qual, Sócrates, obviamente – e rapidamente – aceitou: estava num início fulgurante de carreira, titulava a pasta do Ambiente, e tinha “bonne presse”, como regra geral os socialistas têm, mas na altura ele tinha mais. Recordo-me que nessa altura se batia – com uma velocidade veemente – contra os ventos e as marés politicamente correctas que na rua e nas televisões vetavam a co-incineração, da qual o então ministro se ocupava com afinco.

Depois a maionese talhou e depois apodreceu. Ignoro quando talhou ou mesmo se esteve sempre talhada, o que interessa é que um belo dia percebemos que o Governo objectivamente lesava o país, exibindo então o seu chefe as piores maneiras e péssimos métodos. Raras vezes me envergonhei tanto como quando assisti aos insultos pessoais a Manuela Ferreira Leite na campanha legislativa de 2009; ou quando colegas meus eram telefonicamente vilipendiados pelo primeiro-ministro por discordarem dele. Ou quando nunca havia sombra de resposta – e menos ainda, vontade de a dar – aos embaraçantes  “casos” que iam surgindo, alusivos a diversos e estorricados passos da vida de Sócrates, ao mesmo tempo que gente que me parecia poderosamente pouco confiável, destruía papéis e escutas; ou quando o então primeiro-ministro em puro estado de negação, parecia um animal em fúria, negando tudo, correndo para a frente e mentindo sempre. Isso. Estamos bem lembrados. Hoje o resto dos seus amigos continua a glorificá-lo, ora agitando feitos, ora brandindo o pobre PEC IV, mas quem é que acredita uma palavra? Se não fosse o IV era o V, ou o VII, o que era preciso era mentir mas a (injustísssima) verdade era a bancarrota e sabia-se que era a bancarrota.

Apesar disto ficou-se de boca aberta quando, logo após o virar de página da eleição de António Costa, este designou Ferro como pastor das suas ovelhas parlamentares. Costa, dono de vitória com score surpreendente, teria podido escolher, decidir, eleger quem quisesse e como quisesse. Ficámos assim a perceber que Ferro foi a escolha intencionalmente desejada. Não houve ainda uma ideia ou um fôlego, mas houve um ressuscitar de José Sócrates numa intervenção a que a tribuna do hemiciclo conferia nobreza e gravidade de Estado.

E voltei a espantar-me quando Francisco Assis, conhecido pelas sua lucidez e frontalidade, me “vendeu” (também ele?) o famigerado PEC IV e me desfraldou o seu orgulho pelos governos de Sócrates; e quando Augusto Santos Silva, conhecido pela sua inteligência fria como uma lâmina, debitou discurso semelhante.

Ferro, Assis e Santos Silva são episódios ocorridos nos últimos tempos. Quer isto significar que não aprenderam nem esqueceram. Não fora a bomba atómica do último fim de semana, e nunca ao PS ocorreria reviver a era Sócrates, rever a matéria, analisar o personagem, confrontar o passado. Separar o trigo do joio. Fazia-se de conta, ia-se andando, talvez até ganhassem as eleições sem terem de passar por essa maçada. E depois recomeçaria tudo de novo.

Sucede que agora, para que o futuro político volte a sorrir aos socialistas, já não se trata de rever a matéria, mas simplesmente de erradicar o socratismo de qualquer actuação ou decisão políticas. Estarão para aí virados? O mais imediato bom senso e a mais elementar decência diriam que sim. António Costa pode fazer isso? Quer politicamente fazer isso? Não sei. É que não basta ignorar as confrangedoras declarações de Mário Soares à porta da cadeia de Évora, isso são serviços mínimos. Será a nova liderança capaz dos máximos? Sim, é verdade: a oportunidade é “única”.

Ver-se-á. Mas pergunto: aquela tremenda frase que um dia destes vinha no El País terá no futuro algum efeito no Largo do Rato? Dizia singelamente a frase: “o homem que trouxe a austeridade ao país não quis partilhá-la e preferiu ir para fora” (cito de memória)

2. Enquanto não se achar obsceno – e por isso inadmissível – o trânsito de fugas de informação entre as polícias, magistrados, juízes e alguns jornalistas (sempre os mesmos), a Justiça não se recomenda e o regime asfixia. Os portugueses já esperam pelas escutas como por mais episódio da telenovela da noite. Aliás, elas nunca nos desiludem: são fiéis. Sem surpresa nem decência, surgem pontualmente,   exactamente nos lugares onde sabemos de antemão que estarão à nossa espera e sempre processadas do mesmo modo: através de um execrável conta-gotas, accionado seja lá por quem for, deixando cair veneno em forma de manchetes. Tudo confundindo porque há verdades, mentiras, meias verdades, meias mentiras, é conforme dá jeito. Mas obviamente tudo manchando, corroendo, corrompendo.

Mas nem esta questão, gravíssima e por isso revelantíssima, é hoje, agora, neste exacto momento da nossa vida colectiva, o maior problema. Nem o “ponto” do que está em causa e em curso: ao fim de anos de suspeitas sobre casos que sempre navegaram entre o inexplicável e o inaceitável, José Sócrates foi detido. Chega-me como “ponto”. Chega-me antes de saber o epílogo. O que se passou anula a “forma” como tudo ocorreu.

Tenho um lado “institucional” que me impele a não confundir as coisas: um estatuto é um estatuto, um cargo é um cargo, um representante da nação é um representante da nação. E um ex-primeiro-ministro é um ex-primeiro-ministro. Tem de ter um tratamento diferenciado e mantenho este ponto de vista. Mas face ao cerne da questão de pouco adiantaria ter sido de outra maneira, noutro local, ou a outras horas. O problema não é termos visto um automóvel com um detido lá dentro, filmado fugazmente. O problema é o nome e a ex-função do detido. (Noto e anoto porém que o que é grato de ver para um Berlusconi, por exemplo – circo e devassa – aqui foi considerado um atentado à dignidade. Nem tanto à terra.)

3. Mário Soares não hesitou em pedir uma excepção à regra do estabelecimento prisional de Évora para visitar o amigo do peito. O mesmo estatuto que lhe confere esse direito impediria naturalmente a sua consciência de publicamente se exibir e pronunciar como o fez. Não ocorreu assim porque Soares nunca “se” impediu nada. O “ponto” não reside no infringimento das regras mas na espécie de direito divino de que ele se apropriou para absolutamente tudo lhe ser permitido. (E, já agora, também a esposa do advogado de Sócrates achou normal subir ao palco, entrar em cena e actuar no processo judicial. Deu bocas, deixou dicas, opiniões, interjeições. À mulher do advogado não basta ser séria. Tem de parecer. Não pareceu. O ponto foi esse.)

4. As vezes há  que ter cuidado com o achamento do “ponto”.

PS: Ficou o aviso: “vou andar por aí”. É inédito num detido mas não surpreende: para Sócrates a melhor defesa sempre foi o ataque.