Confesso: sou um crítico dos exames nacionais. Só que, ao contrário de outros críticos que leio nos jornais, não é tanto a quantidade de exames (se são muitos ou poucos), nem o seu grau de dificuldade (se cada um dos exames foi considerado fácil ou difícil) que me preocupam – não sou contra a existência de exames e não sei avaliar a sua dificuldade, pelo que esses são debates em que evito participar. Não que essas questões sejam irrelevantes, o que são é questões circunstanciais, que dependem sobretudo de ajustes e não de grandes opções estratégicas – é fácil, de um ano para o outro, diminuir ou aumentar o número de exames, tal como é simples manipular a sua dificuldade. Ora, o que me preocupa realmente é algo que está na raiz dos exames: estão completamente desfasados das necessidades de aprendizagem dos alunos. Por duas razões: porque os professores/directores não os usam para melhorar as aprendizagens e, sobretudo, porque o modelo de exame nacional português consiste em executar e replicar conhecimentos aprendidos de cor, em vez de estimular o pensamento crítico e o raciocínio.

1. A primeira foi exposta por Hélder de Sousa, director do organismo responsável pelos exames nacionais (IAVE), que lançou o mote em entrevista ao Público: os exames não estão a gerar melhorias das aprendizagens. E, em boa verdade, a culpa nem é dos exames. Tratando-se de um instrumento de diagnóstico das aprendizagens e dificuldades dos alunos, exigir-se-ia que os relatórios sobre os exames (que apontam para os pontos fortes e fracos dos alunos) fossem lidos com toda a atenção por directores e professores, no sentido de adequarem as suas práticas pedagógicas. Só que isso não acontece e há nas escolas demasiada gente a lavar as mãos dos resultados e das dificuldades dos alunos. E, como não acontece, ano após ano, os diagnósticos repetem-se, os pontos fracos nunca desaparecem e, nas escolas, os professores dão as mesmas aulas e da mesma maneira. Como se costuma dizer, só os loucos acreditam que a mesma acção repetida sucessivamente pode gerar resultados diferentes. E como nem os directores nem os professores são loucos, o que existe é uma desresponsabilização geral face às fragilidades dos alunos. A função construtiva dos exames, que é diagnosticar problemas e ajudar à melhoria, fica muito aquém do desejável.

2. Essa desresponsabilização é apenas a ponta do icebergue de um problema mais profundo nos exames nacionais, que é a sua adequação às necessidades de aprendizagem dos alunos na sua preparação para a vida adulta. E esse é um problema estratégico e de difícil resolução.

De há vinte anos para cá, através da internet e da multiplicação de meios de comunicação, o acesso ao conhecimento mudou estruturalmente. Vivemos tempos em que o conhecimento está à distância de um clique e de uma ligação à rede-sem-fios. Quem antes queria saber o nome de um rio, em que cidade nasceu Napoleão Bonaparte ou o ano da descoberta da penicilina tinha de perder uma tarde na biblioteca e aprender tudo de cor para lá não ter de regressar. Hoje, é bem mais simples – basta procurar no Google, a informação está ali em permanência, à espera que a encontremos. Ora, isso tem consequências na educação. Num mundo onde a informação está disponível a todos, o que faz a diferença já não é a informação em si, mas o que se faz com ela. Dito de outro modo, preparar os jovens de hoje para os desafios de amanhã não passa por transformá-los em enciclopédias, mas em ajudá-los a pensar por si próprios. Por isso, o que os nossos jovens precisam da escola, para além da óbvia aquisição dos conhecimentos básicos, é sobretudo a criação de ferramentas intelectuais que lhes permitam articular a informação disponível e os seus conhecimentos, formular ideias, desenvolver raciocínios e resolver problemas.

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Ora, não é coincidência que a resolução de problemas e o pensamento abstracto sejam domínios particularmente difíceis para os alunos portugueses que, de acordo com a avaliação PISA 2012 da OCDE (Vol. 5), são bons a replicar conhecimentos e a executar ordens, mas piores a raciocinar, a procurar as suas próprias soluções ou a questionar os seus conhecimentos. E digo que não é coincidência porque acredito que a raiz do problema está no modelo dos nossos exames nacionais.

É inquestionável que os exames determinam o modo como as aprendizagens são adquiridas, porque estabelecem o padrão de avaliação que se traduzirá em sucesso ou insucesso. Se um exame tiver 20 perguntas curtas de resposta múltipla, os alunos vão decorar o manual de trás para a frente para acertar nas respostas. É como estudar para o exame de código para tirar a carta de condução – decora-se tudo para dois dias após o exame não nos lembrarmos de nada. Mas, num cenário diferente, no caso de o exame ser composto unicamente por uma pergunta de desenvolvimento, então os alunos terão de mostrar que sabem reflectir sobre um tema, tomar opções e articular todas as suas aprendizagens numa resposta com cabeça, tronco e membros. Ora, o que acontece com os nossos exames nacionais é que, em vez de testar a capacidade de os alunos articularem os seus conhecimentos em perguntas de desenvolvimento, os jovens estão a ser treinados para o Quem Quer Ser Milionário. Por exemplo, no ano passado, os exames nacionais de História A e Filosofia duraram 2 horas e tiveram 12 e 16 perguntas, respectivamente. Só para comparar, o exame nacional de Filosofia em França dura 4 horas e tem apenas uma pergunta.

3. Retomando o início, a minha crítica resume-se assim: os exames nacionais estão desligados das necessidades educativas dos alunos. Seja porque os professores não os usam para adequar as suas práticas pedagógicas e melhorar as aprendizagens dos alunos. Seja porque, na sua raiz, se focam demasiado na exibição de conhecimentos adquiridos, em prejuízo do estímulo à reflexão, ao espírito crítico, ao desenvolvimento de textos – e, assim, condicionam a aquisição dessas competências nas escolas, pois os professores ensinam em função do modelo de exame (o modelo de avaliação vigente). Não haverá muitos outros temas que, no debate público, ocupem anualmente tantas páginas como o dos exames nacionais. São muitos, são poucos, são fáceis, são difíceis, são rigorosos, são instrumentalizados pelo Governo, toda a gente tem uma opinião. No entanto, parece que o essencial, que é a qualidade das aprendizagens dos alunos, fica sempre esquecido do debate.