1. Já ouvi chamar batota, abuso, embuste, assalto, geringonça, manigância a esta trapalhada em que estamos, feiíssima trapalhada que as boas almas se apressam sempre a rotular de “legítima”, com a palavra à trela ou no bolso, usada a torto a direito, como garantia de bênção pelas diversas intelligentsia. (Sucede é que por vezes o que é “legitimo” não coincide com o que está “certo”).
Nunca porém ouvi evocar o caldo cultural ou civilizacional que tornou a trapalhada exequível mas julgo que ela seria impossível há quinze, vinte anos, quando o chão debaixo das nossas convicções era um pouco mais sólido. Não me parece que há duas ou três décadas algum líder ou algum partido – mesmo munido de despudorada ambição de poder – contasse com tão propício caldo cultural para pôr ao lume o cozinhado que aí está.
A conjugação entre o abandono de alguns valores essenciais, o relativismo acelerado, a sucessiva perda de vários nortes; a falta de convicções, o menosprezo do sentido de pátria, o desuso do interesse nacional, tecerem entre si a teia ideal onde hoje “manigâncias” ou “geringonças” se inscrevem com fluida naturalidade. Protegidas pela cápsula da “legitimidade”, claro está.
Não é de resto senão essa assinalável naturalidade que melhor mede os níveis de infecção do ar do tempo que é o nosso. Basta ouvir o silêncio ensurdecedor que durante as últimas semanas envolveu todo o espaço à direita do PS para se compreender o que digo; basta constatar como os habitantes desse espaço foram incapazes de operacionalizar, com proveito politico, o caudal de “indignação” que – em privado ou em inócuos fóruns – diziam sentir; basta observar como alguns mentores ou responsáveis da sociedade civil, patrões ou “concertadores sociais”, estão já disponíveis para o beneficio da dúvida senão mesmo para a fé, para, com assinalável segurança, obter a temperatura do ar que se respira.
A excepção das poucas centenas de patriotas que se deram ao trabalho de exibir na rua a a vergonha da sua humilhação ou de uma ou duas (não mais) iniciativas com a da Associação das Empresas Familiares, ninguém abriu a boca. Nem, de modo audível ou impressivo, se ouviram os tambores da “indignação”.
Que poderiam eles fazer perguntarão os de má fé, julgando (mal) que defendo uma guerra civil quando me limito a constatar o óbvio: podiam não ter desaparecido, por exemplo. Podiam não se ter deixado acantonar deste modo. Podiam ter-nos evitado o embaraço de os ouvir “chamar” por Assis nas ruas, em vez de pelos seus. Podiam ter escrito, intervindo, manifestado, reagido – o que fosse – face a esta absolutamente espantosa nova narrativa – uma estreia absoluta – segundo a qual não foi o PS que virou à esquerda mas a direita que (céus!) “se radicalizou” de tal modo que empurrou os socialistas, coitados, para o seu regaço esquerdo. Paulo Rangel salvou ao de leve a honra deste convento com brilhante prosa sobre a imbecil narrativa. Mas esperava-se mais, há-de convir-se.
Todo esse espaço à direita do PS – parte do qual de resto já se entretivera a votar em Outubro em moradas políticas fantasiosas – preferiu agora demitir-se do que é e do que representa. Vai-lhes a jeito. Enquanto isso, inertes e inúteis, suspiram por Cavaco Silva, – “o Cavaco não vai empossar o Costa, pois não?” – transferindo para ele frustrações e mágoas. Esperam pelo Presidente tal como há mais de cinco séculos esperaram por D. Sebastião. São os mesmos.
D. Sebastião preferiu não sair do nevoeiro como o Presidente da República (felizmente) preferirá não sair da Constituição (e ainda bem, se me permitem).
Sim, o cozinhado vai ser engolido. Mas por favor não procurem cozinheiros só no PS nem nos seus (artificiais) aliados do PC e do BE: houve imensos ajudantes de cozinha à direita. Alguns andavam de resto a treinar aos fogões há já alguns anos.
2. Nunca deixarei de pasmar com os disponíveis para o adversário e com os obsequiosos para com o inimigo. Porque não? perguntam eles a sério. Porque não dar o benefício da dúvida aos cozinheiros – adversários ou inimigos? Porque não dar-lhes uma mão (as duas, mesmo)? Com uma galhardia duvidosa estão sempre disponíveis para “conversar” e com gosto até para “colaborar”. Porque há-de ser “assim tão mau?”, ouço eu aos disponíveis de todos os géneros. Não mostrou Costa os dotes de um “verdadeiro político”? Não seria até boa ideia convidá-lo para esta ou aquela tertúlia para o ouvir “esclarecer” melhor o que lhe vai na alma? Não é ele tão “hábil a esgrimir” politicamente? Um “excelente negociador”, um “mestre do jogo”, um “fabricante de consensos”, um político “combatente”? (Por pouco era De Gaulle num bunker a tecer a vitória dos aliados). Não sei de onde pode vir este tipo de disponibilidade – genética? – nem como ela se fabrica, sei que a acomodação confunde.
Até “pode ser que corra bem”, dizem com solicitude. E não é verdade que tudo ainda “mal começou”, perguntam, dispostos a embarcar na nave dos loucos.
A última disponibilidade conhecida é a fé (a maior das fés) num Centeno que além de se atabalhoar com o verbo, mas isso ainda é o menos, exibe uma felicidade embaraçante. Há visivelmente ali muito pouco suporte para tão grande cometimento. Tecnicamente, politicamente, culturalmente, quem é afinal Mário Centeno? A pergunta é legítima (consintam-me a consagrada expressão) após as suas últimas prestações mediáticas e parlamentares, mas os disponíveis “aguardam”, claro, pois “é cedo” para avaliar. Eu fiquei de cabelos em pé. Se já se estranhava tanta e imperturbável indiferença em alguém como Mário Centeno que em quatro semanas ficou despojado de um programa económico cujo conteúdo e desenho inspirou e liderou, agora choca tão exuberante felicidade num responsável que – pelo que se viu e ouviu e não fui só eu, foram milhões de pessoas – parece afinal pouco talhado para a empreitada.
Se ao menos ele risse um pouco menos. Mas até nisso os disponíveis estão disponíveis: o Centeno é um homem tão simpático. E sério, vem do Banco de Portugal, tem obra publicada…
Ah, Costa vai poder contar com os disponíveis. Vão-lhe ser certamente de muito maior utilidade que os recalcitrantes comunistas ou as azougadas raparigas do Bloco de Esquerda. Os do PC e do BE tem prazo como os iogurtes, e são eles aliás que decidirão a conveniência desse prazo (se não o fizeram já). Os disponíveis, por definição, tem bateria para toda a vida.
(Como não sou o televisivo Porto Canal não peço desculpa. É exactamente isto que penso e quero dizer: azougadas raparigas.)
3. Conheci Helmut Schmidt em Dezembro de 1977, num aprazível serão no decorrer da visita oficial do então Presidente Ramalho Eanes à então Republica Federal Alemã que cobri para o Expresso (santo Deus, parece que estou a falar da Idade Média!).
Houvera um jantar em Bona oferecido pelo casal Eanes aos seus anfitriões e, após o café, diante de uma lareira acesa, um pequeno grupo entretinha-se a ouvir o chanceler Helmut Schmidt, presente no banquete. Nunca mais me esqueci. Schmidt impressionava pelo olhar denso, o porte, o verbo seco, a lucidez cortante, a visão das coisas, a visão do mundo. O brilho da inteligência, a energia de um torpedo, um critério sem falhas, a vontade política, a tenacidade, o bom uso do poder, fizeram deste homem que pertenceu ao escol das lideranças mundiais um excepcional político europeu com quem se contava. Nessa noite, em vez da casaca protocolar (“não gosto dessas fantasias”), usava um bizarro “smoking” azul já coçado, tinha as unhas pouco limpas, mas o interesse do que dizia e das perguntas que fazia sobre Portugal (ouviu mais do que falou), absolveram-no dos pecadilhos da forma. Acompanhara bem a revolução portuguesa e elogiou, sem favor nem mimo, o “corajoso” social-democrata Soares que guiara Portugal por entre a tempestade revolucionária reconduzindo-o à democracia.
“Penso que para o futuro – e gostava de acreditar nisto – a sua figura será indispensável”. Helmut Schmidt não se enganava. António Barreto, então ministro da Agricultura do mesmo Soares e que integrava a comitiva do Presidente português, deve lembrar-se bem desta conversa em “petit comité”, onde foi o interlocutor principal da pertinente curiosidade do chanceler.
Helmut Schmidt fez escolhas, separou águas, delimitou territórios, não teve medo.
Com isso honrou o Ocidente a que pertencia. Agradeço-lho ter ajudado a fazer o mundo em que quero viver. E agora que ele se despediu de uma vida que tão bem serviu, eu tinha de lhe dizer isto.