1. Em 1958, Mao Zedong lançou o Grande Salto em Frente. Alucinadas políticas agrícolas, industriais e de obras públicas, de conceção inteiramente humana, resultaram, segundo o académico Frank Dikötter, em pelo menos 45 milhões de mortos. Qual foi a desculpa oficial apresentada pelas autoridades chinesas para a fome e os mortos? Ora: houve uma sucessão de calamidades naturais que resultaram em colheitas minúsculas. Este tempo ficou conhecido como os ‘três anos de desastres naturais’.

Francisco da Silva Costa, Miguel Cardina e António Avelino Batista Vieira, em ‘As inundações de 1967 na região de Lisboa, Uma catástrofe com diferentes leituras’, sobre a tragédia das ditas cheias, verificaram que a imprensa amiga do regime focava as notícias no sentimento de fatalidade, no impacto das causas naturais e na generosidade geral que se seguiu. (Reconhecem?)

É próprio de ditaduras culpar desastres naturais por mortes evitáveis. Há que impedir contestação e protestos por incompetências e negligências dos queridos líderes. É neste quadro que devemos ler os argumentos dos jornalistas engajados que nos querem convencer que nada há a fazer porque a floresta arde, o aquecimento global está aí – e fica tudo dito.

É neste contexto também que enquadramos a história tão prontamente cozinhada por todas as autoridades, a do desastre natural incontrolável e das condições climatéricas atípicas (alguma vez se viu neste polo norte onde vivemos altas temperaturas e baixa humidade?). Uma situação imprevisível (a geringonça tinha dado ordem ao clima para só se fazer notar a partir de 1 de julho, e ninguém está a reprovar devidamente esta irreverência climática). Num país onde nada se descobre, em poucas horas encontrou-se a maldosa da árvore que recebeu o raio e matou toda a gente. A culpa é da árvore, do raio e, se há culpa humana, é da aleivosa criatura que ali a plantou há algumas décadas. Ao jornalista Sebastião Bugalho, do i, a gente da zona contou que a trovoada seca ocorreu depois do fogo deflagrar. Devem ter inalado fumo de alguma plantação ilegal de marijuana que ardeu.

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2. Foi bom ver as gelatinas que nos governam. Num momento em que precisávamos de gente de cabeça fria e decisão certeira, a pessoa do Palácio de Belém e o secretário de estado deixaram-se fotografar, na noite do desastre, emocionados, abraçados, como se a desabar. A ministra Urbano de Sousa teve a falta de noção de falar dos seus estados emocionais numa entrevista televisiva. O primeiro-ministro, em vez de se mostrar ao comando, tuitou-se a abraçar uma senhora.

Indecorosa utilização das emoções. Quando necessitávamos de confiar que nos protegiam, apresentaram-se como se lhes devêssemos dar um lenço para assoar as lágrimas.

3. Mas atenção: a culpa afinal pode não ser da trovoada seca e da natureza diabólica. Há culpa (porventura proveniente de psicopatia, presumo) do governo PSD-CDS – quem o diz é o pantomineiro Capoulas Santos, ministro da agricultura há quase dois anos, ministro da agricultura mais quatro anos em governos PS anteriores, somados a outros quatro como secretário de estado.

Concordo. Terá sido Assunção Cristas a culpada da GNR não ter tido ordens para encerrar a estrada (Costa já o reconheceu, e não são os guardas que por artes mágicas adivinham a progressão possível do fogo), enviando pessoas para a estrada onde morreram. Cristas também terá hipnotizado os cérebros dos governantes: parecem supor que as previsões do IPMA servem somente para aconselhar os autóctones a beber muita água, usar chapéu e por proteção solar nos frequentes dias ‘atípicos’.

Mais. Foi o governo anterior culpado do falhanço do SIRESP, produto por acaso também de António Costa. Servindo supostamente para agilizar comunicações no combate aos fogos, funciona só se por sorte as chamas não consumirem as antenas – como sucedeu este fim de semana. Genial, não é? Também é inegável culpa de Passos Coelho os bombeiros, por má organização da proteção civil, não terem chegado em tempo útil a algumas povoações cercadas. Aposto, acrescento, que um esquivo deputado do PSD que se infiltrou na Proteção Civil e deu a informação do avião caído ontem, lançando a confusão. Outro, do CDS, avariou o camião frigorífico da PC.

Um governo quase a meio do mandato, de um partido que nos últimos vinte anos governou o dobro do tempo do PSD-CDS (pelo que teve o dobro da disponibilidade, e em anos que se gastou a rodos, para implementar as suas políticas – ou para protelar soluções) é que não tem qualquer responsabilidade.

4. Os abutres estão sempre à espreita. Já houve quem aventasse outra culpada aceitável: a propriedade privada da floresta. Bem como a necessidade de nacionalização das terras para as manter, em propriedade pública, limpas. Já estão a gargalhar, certo? O Estado – que tem estradas e ruas com buracos, hospitais e escolas decrépitas, património histórico em degradação, e por aí adiante – não se vê cristalinamente que vai manter florestas limpas? Se acha que sim, faça o favor de partilhar a receita dos alucinogénios que toma.

A solução é a contrária. Agilizar (em alguns casos eliminar) licenciamentos de negócios rurais. Flexibilizar os PDM, que tantas vezes obrigam a usos de terrenos (turismo aqui, agricultura ali, habitação ao lado), determinados em gabinetes, desadequados às localizações, resultando em nenhuma atividade económica e, consequentemente, proprietários não têm dinheiro para os limpar.

5. Não vamos fingir que se apurarão responsabilidades, incluindo políticas, por 64 mortes. Ou que saberemos com precisão o que correu mal. O branqueamento começou com as palavras da pessoa de Belém (fez-se ‘o máximo’), continuou com a culpa da natureza – que um António Costa titubeante e inseguro reafirmou ontem na TVI –, prosseguiu com a converseta ignóbil ‘é um desrespeito aos mortos fazer perguntas neste momento’ e seguirá com uma comissão de inquérito fantoche, que servirá apenas para isentar o PS. Isto é mais importante que honrar os mortos apurando responsabilidades.