Nestes últimos anos temos verificado uma persistente sintonia entre PSD e PS: nenhum dos partidos entende aquela categoria que dá pelo nome de ‘os portugueses’. Os portugueses reais estão para PS e PSD mais ou menos como a lógica aristotélica para quem fez uma operação dolorosa e foi sedado com morfina. E a argúcia dos dois partidos no conhecimento de ‘os portugueses’ equipara-se ao bom senso e à capacidade de lidar por si próprio com as adversidades da vida de Bertie Wooster, de P. G. Wodehouse, que só conseguia escapar-se dos noivados contrariados, das sovas dos apaixonados das suas noivas e das armadilhas das tias pela ação de Jeeves, o mordomo.

Comecemos pelo PS. Tal como uma seita new age espera num santuário dos Andes pelas naves intergaláticas que a vai levar a dançar entre as estrelas, ou como os cubanos e os venezuelanos esperam pela abundância que traz o socialismo, os socialistas nacionais ainda estão à espera que ‘os portugueses’ se levantem violentamente contra o atual governo. Que – segundo vários socialistas, alguns deles ainda não na fase Alzheimer – fez o país regressar a níveis de pobreza piores do que os de 1974. E procurou diligentemente o empobrecimento do país (tudo porque são pessoas pérfidas que todas noites abrem garrafas de Bollinger Brut para celebrar o sofrimento generalizado da população portuguesa).

Perante tanta malfeitoria governativa, o PS espanta-se como a turba furiosa não tomou as ruas. É certo que em várias manifestações da CGTP se lançaram balões de ensaio de violência (dos quais a CGTP se demarcava apenas oficialmente mas com evidente ternura pelos manifestantes violentos) e que a encantadora central sindical chegou a invadir ministérios (negando depois as claras imagens que todos víamos nas televisões). Mas de resto só calmaria. Uma grande e pacífica manifestação aquando da aberrante proposta da subida/descida da TSU e mais nada. As maluquices das grandoladas morreram com anemia.

Encontremos sff em nós benevolência para com tantas incompreensões profundas do PS. As mesmas que o levam a supor que não sofre uma hemorragia eleitoral ao centro de cada vez que abre a porta a futuras coligações com PCP ou BE. Prenhes de amor à socialização do meios de produção, prontos a declarar paixão fervorosa (perdoe-se a redundância) pelo próximo país onde a revolução esquerdista imperar e sem saber fazer contas de somar e subtrair que nos permitem ver que não é possível diminuir défice e impostos e aumentar despesa ao mesmo tempo – que é como o PS nos vê –, não vislumbra que o país que em 1975 recusou (aí sim, com violência) derivas comunistas não vai em 2015 – quando estamos muito mais ricos e, logo, temos muito mais a perder – embarcar em namoros com o esquerdismo radical.

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Assim lá ficaram Mário Soares e os seus alucinados apelos à violência desiludidos. ‘Os portugueses’ pagam impostos (insuportáveis e imorais) e perderam regalias (daquelas pagas com o dinheiro dos contribuintes) descontentes, atraiçoados, amaldiçoando este e aquele, insultando a mãe dos ministros, mas pacificamente. Porque vêem claramente que quem causou os anos amargos da austeridade foram as políticas do PS depois de 13 anos quase ininterruptos de governo, lembram-se com uma vivacidade irreprimível que quem negociou e assinou o memorando com a troika foi o PS e entendem que, mesmo com muitos erros do governo (oh, e quantos), o pecado original da austeridade está todo em cima do PS. Como povo falhamos estrondosamente no amor à insurreição armada.

Do lado do PSD ‘os portugueses’ não são menos desentendidos.

Talvez por excesso de leitura de Sade nas adolescências sociais-democratas, o PSD passou a governação convencido que ‘os portugueses’ apreciavam though love. Ora tomem lá enormes aumentos de impostos e caladinhos, que nós aqui não gostamos de pieguices. Quem não está bem, faça o favor de emigrar, que isto foi sorte que já coube a muitos portugueses e fez-lhes bem à saúde. Os mais pobres que não sejam choramingas, que lá por perderem umas dezenas de euros mensais não se devem esquecer que os mais abonados perderam centenas ou milhares, onde é que está a empatia com o sofrimento alheio?

Para o PSD, a culpa da crise foi o consumo e o endividamento privados, não o despesismo público descontrolado – tanto que se recusou sequer a tentar a famosa e infame reforma do estado – e quis, qual pai castigador, punir os filhos perdulários. Ensinar-lhes que de futuro devem ser poupadinhos e sovinas, que isso do consumo é para os ricos de lá fora no resto da Europa.

Pois é: o PSD está convencido que nós somos ainda o país provinciano de há décadas, que vemos o gosto pelo conforto como uma fraqueza moral. Bens culturais são uma indulgência de quem não trabalha e não tem de se preocupar em pagar contas. O empreendedorismo (entendido na forma mais básica e néscia) é o alfa e ómega do bom cidadão. Economia do conhecimento e o valor crescente das atividades criativas e artísticas são excentricidades para serem ensinadas nas universidades mas desligadas da vida real. Somos tacanhos and proud of it – para o PSD. Que depois se queixa de ser ignorado pelo eleitorado urbano mais jovem.

E a culpa deste desentendimento de PS e PSD cabe, claro, aos cidadãos. Devíamos saber melhor do que contrariar a imaginação dos políticos e exigir-lhes que vejam a realidade.