Não sei se há outras línguas que possuam, como a nossa, uma expressão como “para inglês ver”. Por mim, não me lembro de nenhuma. Mas é verdade que em Portugal cai às mil maravilhas. Sob o olhar do outro, do estrangeiro, vamos fingir que tudo corre como deve ser, civilizada e ordeiramente. Respeitamo-nos uns aos outros impecavelmente e cumprimos a lei. Mas saindo para fora do campo do olhar alheio tudo muda. O respeito e o resto eram ludíbrio e cada um se desenvencilha como pode, sacudindo, se a situação o reclamar, a água do seu capote. Vai-se ver e era tudo para inglês ver. Um artifício.

O problema é que às vezes o reino das aparências se desmorona às claras, aos olhos de todos. Nestes dias posteriores à tragédia de Pedrógão Grande viu-se isso na perfeição. Os serviços do Estado entraram em guerra aberta entre si. A Protecção Civil, a GNR, o SIRESP e o Ministério da Administração Interna (devo estar a esquecer-me de mais alguns) tentaram passar a responsabilidade da catástrofe, nomeadamente das vítimas da “estrada da morte”, uns para os outros. Mais: a própria ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, tentou, num gesto inédito, passar a culpa para o seu próprio ministério, ao mesmo tempo que se inocentava a si mesma, protestando o seu sofrimento pessoal. E também, por causa do SIRESP, para o Governo anterior, como mandam as regras, no que tem sido generosamente acompanhada pelo ministro da Agricultura, Capoulas Santos. Quando o Estado não protege os cidadãos, é legítimo, como se sabe, que cada um se defenda a si mesmo. Mas o espectáculo da fragmentação do Estado em corpos individuais que, no seguimento de uma tragédia das proporções desta, se procuram proteger a si mesmos uns dos outros transmite a ideia que a sua unidade é ela mesma uma ficção para inglês ver.

O Governo de António Costa, por mais equívoca que tenha sido a sua gestação, é de uma legitimidade à prova de bala. E por mais dúvidas que existam quanto à justeza das suas políticas, ninguém são de espírito deseja catástrofes de qualquer espécie que o removam do poder. Sobretudo deste tipo, é claro, mas também daquelas, económicas e financeiras, que muitos advertem serem praticamente inevitáveis. Por mim, sem um pingo de dúvida, ficaria feliz como um cuco se os meus medos não se realizassem. E meteria com agrado a viola no saco se o que me parece provável não se realizasse de todo. António Costa, que se saiba, não é um louco como Nicolás Maduro, embora entre aqueles que apoiam o Governo haja gente que aprecie imenso o homem da Venezuela.

Acontece, no entanto, que a indescritível barafunda posterior à tragédia pode revelar algo de próprio a este Governo. A sabedoria mediática diz prodígios da habilidade de Costa, e, se entendermos por “habilidade” a capacidade de conquistar o poder contra todas as probabilidades, depois de ter perdido as eleições, e de o ter sabido, não menos improvavelmente, manter, a coisa é indiscutível: o homem é mesmo hábil. E essa habilidade é certamente uma virtude política. Mas, e aí reside o problema, essa virtude política é coxa se não for acompanhada de uma outra, que é a da concepção do Estado como algo de mais profundo que o simples lugar a partir do qual se podem satisfazer as clientelas que nos apoiam: como algo que nos permita efectivamente pensar o futuro sob o signo de uma certa confiança e estabilidade. E aqui Costa parece falhar. Não digo que falte a intenção, essa tê-la-á certamente. Falta é, com toda a probabilidade, o tempo. Por mais hábil que Costa seja, o tempo consumido no exercício dos seus particulares dotes, da sua “habilidade”, não lhe permite dedicar-se suficientemente ao resto, ao que deveria ser verdadeiramente essencial. Por detrás da habilidade, como muitas vezes, a fragilidade.

O que aconteceu em Pedrógão Grande não é obviamente da responsabilidade pessoal de Costa: a repartição das culpas deve ser vasta. Mas a barafunda consequente, o espectáculo das várias acusações recíprocas, já, em certa medida, o é. Quando toda a energia do Governo é em última análise canalizada para a manutenção do seu apoio, uma espécie de barco de Teseu que perpetuamente se reconstrói durante a sua viagem, é fatal que o Estado se degrade e a pouco e pouco, se fragmente, se transforme em algo para inglês ver. E não vão ser os afectos de Marcelo, também ele um mestre das aparências, a livrar-nos das consequências desta aventura indesejável.

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