A audição parlamentar de Ricardo Salgado foi muito instrutiva. Aprendemos, por exemplo, um provérbio chinês: quando o leopardo morre, deixa a pele; quando o homem morre, deixa a sua reputação. E ficámos ainda com a ideia de que seria possível enriquecer a antiga sabedoria chinesa com este apêndice: quando o banqueiro do regime morre, deixa a sua “narrativa”.

A passagem pela comissão de inquérito permitiu a Ricardo Salgado fazer, sem grandes transtornos, a rodagem do seu mito de vitimização. Na versão de Salgado, tudo começou na crise internacional de 2007-2008, e tudo acabou quando o Governo português e o Banco de Portugal não quiseram auxiliar o que, mais do que um grupo financeiro, era o grande centro de “racionalidade” do país. Entre um momento e outro, Salgado admite “erros de julgamento”, “fragilidades”, e desconhecimentos. Mas fundamentalmente, a questão do fim do BES é, para ele, apenas política: a responsabilidade não é do contabilista, não é do departamento angolano, não é da família, não é dele – é do supervisor, é do Governo, é, enfim, da política. “O BES não faliu: foi forçado a desaparecer”. Uma “decisão política”, como tem insistido a oposição socialista, cujas intervenções de ontem chegaram a desanuviar Salgado (“estamos a chegar a um ponto em que os senhores deputados estão a entender o que aconteceu”, disse com satisfação após ouvir o deputado Pedro Nuno Santos).

Depois de 2008, fomos alvejados com uma “narrativa” que fazia dos bancos os maus da fita. Tudo era culpa dos bancos. Se os particulares estavam endividados, era por causa dos bancos, que os tinham forçado a aceitar empréstimos. Se os Estados estavam endividados, era também por causa dos bancos, a quem tinham tido de resgatar. Mas isso era quando o banco era o BPN, e o governo era do PS. Agora, que o banco é o BES, e o governo é do PSD, a culpa passou a ser do Governo e do supervisor.

De facto, Salgado tem razão: a culpa não é dele. Também não é do Banco de Portugal nem do Governo, deste ou do anterior. Não, a culpa é da Troika. Foi a Troika, ao poupar o regime à verdade da bancarrota, que possibilitou à oligarquia político-financeira dedicar-se com impunidade à fabricação das “narrativas” mais convenientes para escapar às suas responsabilidades. Em 2011, Sócrates já tinha resolvido as dificuldades com o PEC IV, quando a oposição o deitou abaixo. Em Julho de 2014, Salgado tinha “tudo encaminhado”, com uns investidores miraculosos e uma garantia angolana, quando o Banco de Portugal estragou um final feliz. Ah, como este país seria próspero se toda a gente pensasse pela cabeça do Dr. Salgado e do Engenheiro Sócrates.

O que fica de dez horas com um banqueiro arguido por burla, abuso de confiança, falsificação e branqueamento de capitais, não é a história de um grupo que, perante a falência das suas empresas não-financeiras, terá deitado uma mão fatídica ao seu banco. É a sugestão de que tudo foi um caso político, e que não há mais nada para além da política. Ao lado da “presunção de inocência”, funciona assim em Portugal outra presunção, muito mais eficaz a limpar nódoas: a “presunção de política”, que sistematicamente transforma suspeitas, acusações e condenações judiciais em supostas jogadas numa obscura luta pelo poder, que seria nossa obrigação analisar para além do direito e da moral. É por isso que nunca, neste e noutros casos, teremos perante nós culpados, de quem se possa esperar arrependimento, mas apenas vencidos, muito cheios com o seu direito de desforra.

Percebemos assim esta coisa acerca da oligarquia político-financeira do regime: a política serviu-lhes para subirem, e serve-lhes ainda, quando caem, para escamotearem as suas responsabilidades individuais através das mais variadas teorias da conspiração. Mesmo em queda, continuam acima do cidadão comum, que tem de enfrentar os tribunais sem a possibilidade de clamar que a culpa é do Governo ou da oposição. Dizia o Dr. Johnson que o patriotismo é o último refúgio dos velhacos. A política, neste país, também.

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