A política é a arte do possível e vivemos um tempo em que o possível está muito condicionado quer pelos anos negros da troika como, e especialmente, pela margem de manobra muito reduzida que o PS tem, por via de o seu Governo ser apoiado por partidos que não acreditam nem no capitalismo nem no projecto europeu. Temos de concordar que face ao espaço muito limitado para governar no regime de regras de mercado, de elevado endividamento e de necessidade de disciplina financeira, o Governo acabou por fazer mais do que aquilo que alguma vez se poderia esperar.
Conseguiu o inédito feito de ter o PCP e o Bloco de Esquerda a apoiarem, ainda que indirectamente e disfarçadamente, as medidas de austeridade que permitiram passar nos exames de Bruxelas – eles próprios também menos exigentes. Mas conseguiu. Com a arte da política de tornar a austeridade menos visível, com impostos indirectos conhecidos como narcotizantes, com as já famosas cativações – a palavra do ano – e com redução do investimento público. Criou assim espaço para os seus parceiros fingirem que não viam o que se estava a fazer.
Imagine-se que Mário Centeno dizia logo no seu primeiro Orçamento que ia conseguir reduzir o défice público aumentando a carga fiscal dos impostos indirectos, reduzindo o investimento público e gastando muito menos do que o orçamentado por via de cativações que não descativaria. Assim, dito à bruta, não teria o voto nem do PCP nem do Bloco de Esquerda. Há como que um acordo tácito do género “se queres que te apoie não digas o que de facto vais fazer”.
Sendo o défice público a variável que esteve, nos últimos anos, na mira da avaliação do sucesso dos governos, o Governo tem a sua coroa de glória: obteve o saldo orçamental mais próximo do equilíbrio da era da democracia. Com o que fez sem dizer nada a ninguém e ainda com a ajuda da recuperação da economia. Como em tudo na vida, não é preciso só trabalho, é necessário ter também sorte.
Aqui chegados, porque estão alguns economistas tão preocupados com o que se passa? Nem todos estão preocupados, é verdade. E a explicação que se pode encontrar para uns estarem mais preocupados do que outros parece estar na importância que dão à dívida e à falta de poupança do país. Os que olham para esses indicadores estão manifestamente mais preocupados. Porque sabem que o crescimento que estamos a ter é insuficiente para garantir a nossa auto-suficiência financeira num cenário de crise que leve, de novo, os financiadores a fugirem de quem está mais endividado.
Esta semana ouvimos as preocupações de dois economistas, um o governador do Banco de Portugal de forma mais moderada e outro, Daniel Bessa, numa formulação mais assertiva. Carlos Costa, no XIX Fórum da Indústria Têxtil, afirmou que Portugal não tem um problema de financiamento mas sim de poupança. E na apresentação que fez defendeu ainda que o país precisa de continuar a reduzir o endividamento, aumentar a poupança e captar investimento directo estrangeiro.
Daniel Bessa também esteve nesse Fórum em Famalicão, onde considerou que o crescimento que temos é “medíocre” por insuficiente. Em Lisboa, numa iniciativa da CGD, classificou como um erro a aposta no consumo privado pela necessidade que temos de poupança para aumentar o investimento sem dependermos do exterior.
A dimensão da nossa dívida, o crescimento nominal baixo e a redução da poupança são os três factores que justificam estas preocupações. Olhemos para os números.
A dívida do país ascende a mais de 720 mil milhões de euros, mais de metade pertence ao sector privado (56%), de acordo com dados que podem ser confirmados no Banco de Portugal (BP stat, endividamento do sector não financeiro).
Façamos uma pequena conta de algibeira. Se essa dívida de 720 mil milhões de euros tiver um juro médio de 4%, o país, no seu conjunto, está a pagar cerca de 28 mil milhões de euros de juros anuais retirados do rendimento que geramos, qualquer coisa como 15% do PIB de 2016. O crescimento nominal do PIB não gera esse rendimento – em 2016 o aumento do PIB em valor ficou-se pelos 5,5 mil milhões de euros.
O segundo problema é que parte dos juros que pagamos não fica cá. Aquele montante de dívida, que é quase quatro vezes o PIB, é financiado em cerca de 400 mil milhões pelo exterior. Ou seja, por cada cem euros de dívida cerca de 55 são financiados com poupança do exterior. Se a poupança diminuir, como está a acontecer, a dependência do exterior aumentará, tornando o país ainda mais vulnerável a uma tempestade financeira que mais cedo ou mais tarde chegará.
Sim, conseguimos reduzir o défice público. É uma conquista que valeu a Mário Centeno o prestígio que o poderá levar a presidente do Eurogrupo. Mas não estamos a resolver o problema financeiro do país, fundamental para que o crescimento se faça sem depender do exterior e ainda mais virado para o exterior, com ainda mais exportações.
Mas como a política é a arte do possível, enquanto os portugueses continuarem a preferir gastar em vez de poupar e o Governo, este ou outro, não tiver coragem de adoptar medidas que incentivem a poupança, estaremos a percorrer caminhos que nos expõem aos vendavais do exterior.