A literatura é um instrumento muito útil para percebermos o mundo ou, o que vai dar ao mesmo, a natureza humana. Dou um exemplo: para entendermos as hordas moderníssimas e progressistas atuais, Mr. Henry Spoffard dá-nos uma bestial ajuda.

Apresento-vos Mr. Henry Spoffard. Filho de uma família antiga e piedosa de Filadélfia, tinha uma importante missão no mundo: manter a moralidade do bom povo americano, por via de o afastar coercivamente das tentações que o encarrilhariam no caminho do pecado. Mr. Henry Spoffard acreditava em manter a pureza dos outros mesmo, ou sobretudo, contra a vontade desses outros. Foi criado por Anita Loos, diz-se que inspirado num censor de Hollywood com que a autora embateu, para um dos romances mais divertidos do século XX americano: Gentlemen Prefer Blondes. E vinha na tradição dos moralistas anteriores: a sua grande causa de escândalo eram as transgressões sexuais das endiabradas sociedades.

Noventa anos depois do debute no mundo de Mr. Henry Spoffard, felizmente os assuntos de cama – exceto os que atropelam a liberdade sexual de cada indivíduo, também conhecidos por violações ou abusos sexuais – já são vistos como estando fora da esfera opinativa (e punitiva) dos abelhudos moralistas. Mas, para a troca, temos um rol infindável de puritanos, expansionistas militantes da sua moral estrita, em todas as questões alheias à sexualidade. Infelizmente nem têm o benefício de Mr. Henry Spoffard – o de ser ficcional, claro.

Vejamos os religiosos do aquecimento global, por exemplo. E em minha defesa – antes que me excomunguem – digo já que sou bastante sovina, e poupada, no que toca a bens isentos de qualidades estéticas como gasolina e eletricidade, e que tenho uma forte paranoia com a reciclagem e reutilização de uns tantos materiais. Mas, lá está, falta-me o fervor religioso.

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A incitação para que as populações se abstenham de consumir, um exemplo, costuma mergulhar-me na vontade de praticar vudu contra os detentores de tal opinião. Não (ou sim, mas de maneira diferente) que estejam preocupados ser mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha que um rico entrar no reino dos céus. Credo, os religiosos ambientalistas não se querem confundir com os religiosos católicos, que esses são ultamontanos e rústicos. Que proponham exatamente o mesmo é um mero pormenor. As motivações são muito mais nobres que essas tretas de não nos deixarmos escravizar pelos bens materiais. Os ecofanáticos defendem que se extermine o consumo (e, de caminho, o bem estar das populações) para poupar os recursos do planeta (estes religiosos nunca leram Malthus) e para não causar poluição com transportes de mercadorias.

Outro tipo de moralista, bem mais perigoso, é o purista sanitário. Pode-se praticar sexo à vontade, felizmente está estabelecido, e uma ou outra consequência para a saúde ou para a vida (uns sopapos do cônjuge enganado, por exemplo) devem ser encarados com bonomia, que as pulsões sexuais são fortes e difíceis de conter.

Mas não há cá complacência com o álcool (já os antigos diziam que era o pai de todos os vícios, e os antigos alguma vez haviam de ter razão), ousar ter a comida bem apaladada com sal (as pessoas puras de corpo e alma não têm de lhe pagar os comprimidos para a tensão arterial) ou beber refrigerantes açucarados (agora que já se verificou que afinal o colesterol e a gordura não causam o apocalipse humano que os médicos prometeram, teve de se encontrar novo inimigo para atormentar as populações e viraram-se para o açúcar, o novo supervilão; até, claro, dentro de uns anos se reconhecer que o açúcar é essencial para um bom desenvolvimento cerebral das crianças, entre outras maravilhas que então o açúcar de súbito conquistará).

Fumar, esse hábito decadente, devia ser tipificado no código penal ao lado de, pelo menos, uma agressão agravada. Ou, em alternativa, sentenciado sumariamente a internamentos compulsivos de seis meses numa colónia vegan. Só pessoas muito depravadas fumam.

Sem surpresa, o método preferido para estes moralistas obrigarem os celerados hipertensos, chaminés e sucedâneos de Winston Churchill a reformarem-se são os impostos. Inevitavelmente, abundam à esquerda – e acabaram de aprovar impostos sobre estes vícios imorais. Afinal pagamos tão poucos impostos agora, era mesmo muita lata nossa exigirmos um SNS a acudir às doenças em vez de, sei lá, um SNS para pagar mais aos profissionais de saúde por via das 35 horas. (E quando digo esquerda incluo, evidentemente, parte da anterior coligação que sonhava com o mesmo entusiasmo com estas medidas.)

Voltando a Mr. Henry Spoffard, como descreveu Anita Loos na sequela But Gentlemen Marry Brunettes, ‘ele não se importava verdadeiramente o que uma rapariga tinha feito, desde que ela não se divertisse no final […] se raparigas como Dorothy não pagassem, e pagassem, como conseguiriam ter as pessoas morais a satisfação de as ver sofrer. E o que aconteceria à Cristandade?’ É acautelamo-nos, porque enquanto estes moralistas não sentenciarem que já tivemos dolorosa penitência por aquele gin tónico com frutos silvestres, não descansarão as garras.

Nota: nos comentários ao meu último texto, um ex-secretário de Estado de Guterres, Francisco Seixas da Costa, rebateu – com uma (in)exatidão factual proporcional à (des)elegância argumentativa – que o episódio com Pina Moura afinal se passara com Manuela Arcanjo (e que eu isto e aquilo). Ora é falso. Pina Moura estava, como ministro das Finanças, na AR a defender o orçamento retificativo a 29 de junho de 2001 quando se soube do seu afastamento (aqui uma notícia do meio do dia confirmando a substituição). Manuela Arcanjo saiu na mesma altura do Governo, proferindo cobras e lagartos de Guterres, mas com um processo diferente.