Um intelectual é tão frequentemente um imbecil que devíamos sempre, à partida, tê-lo como tal, até que tenha provado o contrário”
Georges Bernanos

1. Não há dois Islāos. Está tudo no mesmo, a face tolerante e a intolerante, guerreira e sanguinária. Há um só Islão, que os muçulmanos — e só eles, não “nós”, não o “outro” — têm de libertar do que contém de obscurantista, obsoleto e intolerável.

Ignorarmos ou fingir que a tragédia do Islão e dos muçulmanos não é marcada por essa dimensão religiosa só contribui para adiar a consciência e prolongar a passividade relativamente a uma realidade que os muçulmanos têm de enfrentar.

Se o Islão não contivesse essa dimensão de intolerância, violência e guerra santa, não era possível a fanatização em massa a que se assiste. É essa dimensão de um Islão desde sempre refém de poderes e ambições políticas, que que seja usado por líderes, bem esclarecidos e pragmáticos esses, com projectos políticos coerentes e historicamente sustentados. Um desses projectos sempre recorrente é o sonho fantasmático do regresso ao califado. É à luz dessa ambição e desse projecto que se pode compreender toda o quadro da guerra na Síria, no Iraque e na Líbia conduzida pelo Exército Islâmico e a atracção de tantos combatentes às suas hostes.

Não é, pois, por se sentirem humilhados e ofendidos pelo Ocidente que se radicalizam e matam, cómoda ideia feita do politicamente correcto, que evita aos intelectuais ocidentais afirmar o que é evidente e aos políticos enfrentar eficazmente o nazismo islamita: o factor religião é autónomo e determinante, só ele pode explicar o fanatismo dos que se entregam ao autossacrifício.

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É pelo Islão que matam e morrem. Só por uma promessa transcendente se mata e se morre assim, neste caso pela crença obscena num deus odioso e absurdo. Ossama Bin Laden: “Nós amamos a morte mais do que vós, ocidentais, amais a vida”.

Induzida pelo marxismo, cimentou-se no Ocidente a visão da religião como um epifenómeno, uma manifestação superestrutural nāo determinante. Por isso o desaparecimento ou a desvalorização nas Universidades dos estudos sobre as religiões. Como observou alguém com argúcia, “laicizou-se a religião e teologizou-se a política”.

Ora, a dimensão religiosa, deliberadamente ignorada pelas elites académicas e pelos políticos, é um factor determinante e explicativo essencial da tragédia do Islão, que alastra ao Ocidente e ao Mundo, começando a explodir dentro das nossas fronteiras. A incompreensão desse factor bloqueia nos vários países do Ocidente a contenção e intervenção eficazes no terreno e junto das comunidades emigrantes.

2. No passado e no presente, milhares e milhares de muçulmanos morreram e morrem por viverem, por quererem viver, uma fé, um Islão pacífico e tolerante.

Esses muçulmanos foram e são o primeiro alvo do ódio, do projecto e ambições políticas desse Islão integrista que tem devastado os países do Médio Oriente e da África.

Hoje como ao longo da História, inúmeros intelectuais islâmicos, nos vários países do Médio Oriente, foram assassinados e são perseguidos por combaterem por um Islão iluminado, livre desse passado original, um Islão que nāo divida o mundo entre crentes e não crentes, que conviva com as outras religiões, que permita o progresso e o desenvolvimento das sociedades muçulmanas.

Sāo esses combatentes que o Ocidente tem de apoiar. Apoiar em vez de enfraquecer, como, afinal, fazem (também entre nós) muitos intelectuais, quando tentam, depois de cada atentado sanguinário num país europeu, culpabilizar-nos a nós próprios pela tragédia, quase pedindo desculpa aos assassinos, que pintam como vitimas do passado colonial ou das nossas sociedades desintegradoras. “Como se se tratasse de terrorismo social”. Todos os indicadores desmentem essa explicação sociológica.

3. Os muçulmanos têm dois problemas a enfrentar.

Um é reforma do Islāo, enfrentarem o que no Islāo o torna uma ameaça para todo o mundo e vencer os que estāo a levá-la a todas as latitudes, parando o pavor e a repulsa global crescentes, humanamente compreensíveis, por esta religião.

O outro é compatibilizar o Islāo reformado, extirpado da intolerância, inspiração e guia, mas não lei civil, com a modernização e o desenvolvimento. Enquanto este último desafio não for vencido, o outro não será ganho, mantendo-se o circulo vicioso — social-político-religioso — que está na origem e tem determinado o beco sem saída da tragédia das sociedades islâmicas do Médio Oriente e da África. A Turquia progrediu e desenvolveu-se porque se laicisou…

4. “Que fazer com os muçulmanos?” (a frase é de Sarkozy num outro contexto) Um grande intelectual árabe, Kamel Daoud, combatente de um Islão iluminado perseguido pelo poder religioso no seu país, a Argélia, na coluna que assina na revista liberal Le Point, prolongava esta pergunta para terminar com uma formulação arrepiante: que fazer com o Islāo, que fazer com os islâmicos, que fazer com o outro, que fazer… de mim e dos meus?

No impacto das notícias assustadoras do dia, na torrente de fait divers que os média não param de despejar, no torvelinho deste tempo sem tempo para reflexão, esquece-se que este Islão com que o mundo se confronta, sendo fé, é também identidade – alma, cimento, substracto agregador que dá sentido à existência de milhões de seres humanos. O emaranhado confessional desliza para o identitário…

“O Islão interdita que se verta o sangue de outrem”, afirma o Cheikh Ahmed al-Tayeb, grande íman de Al-Azhar, a instituição mais antiga e respeitada do islão sunita. Como conjugar e digerir a contradição desta afirmação com as outras, igualmente apoiadas no Alcorão, que levam ao sacrifício e ao assassinato sanguinário, em nome da mesma religião, de milhares de vítimas*? Crimes ordenados por poderes religiosos que se apresentam com igual legitimidade, recorrendo a textos e ao exemplo de actos igualmente atribuídos ao Profeta? Como viver com esta contradição, como têm de viver com ela milhões de homens, mulheres e crianças crentes inocentes espalhados pelo planeta? Como convivem com o pavor e a animosidade crescentes, justificadíssimas, contra esta religião que tarda em civilizar-se?

5. Que fazer com os islamitas? Sigamos o texto de Kamel Daoud, que refere soluções diferentes conforme os países, mas sempre, explica, mantendo-se todas elas num círculo que arrasta o problema: em vez de atacar as causas que produzem os islamitas, as instâncias que os fabricam — as escolas, os media e as mesquitas — tenta-se erradicá-los depois. E porquê? Porque, diz Daoud, as reformas que deveriam ser implementadas para acabar com o aparecimento de extremistas, ameaçariam também esses regimes, levando a médio prazo à sua contestação e à sua queda.

Isto é, esse compromisso entre os regimes desses países e os clérigos conservadores e integristas cujo poder impede a reforma do Islão, imobiliza também a sociedade civil, condenando esses países à pobreza e ao atraso. Segundo Daoud é, por exemplo, o caso do Egipto.

E reencontramos assim o circulo vicioso, social-político-religioso, que parece fazer do Islāo um problema insolúvel, um drama interminável. “Que fazer com o Islão?”

6. A situação no Médio Oriente, interna e nas suas projeções externas, é um emaranhado de manifestações e determinações que tornam impossível a exposição e visão sistemáticas. Várias dessas manifestações e determinações exigem, para serem compreendidas (e enfrentadas) conhecimento e reflexão histórica laboriosos. Outras exigem conhecimento profundo da realidade religiosa, do seu cruzamento com a complexidade e a diversidade dos cenários políticos, com o entendimento do labirinto dos desígnios de poder, com a realidade social, a pobreza, o atraso educativo, o subdesenvolvimento endémico, aparentemente sem saída.

É esta dificuldade que explica a redundância dos textos da generalidade dos comentadores e a irrelevância da generalidade das interpretações. Explica também em grande medida, o desastre da intervenção dos países ocidentais. Posição e intervenção condicionadas também pelo jogo dos interesses económicos e estratégicos imediatos, mas também pelas visões deterministas e sociológicas explicativas que remetem para uma má consciência cujas razões os factos contrariam (nomeadamente a origem nacional e social dos terroristas e o seu nível educativo; e também a sua situação familiar). José Manuel Fernandes referia como “os nossos eleitos, os nossos políticos, não sabem o que fazer e ainda menos o que dizer, pois quase só proferem inanidades que nada adiantam”.

7. Numa entrevista que é um testamento político (Le Point, 23-6), Michel Rocard dizia que para dirigir uma sociedade é preciso compreendê-la, ora os políticos são uma categoria da população que fustigada pela falta de tempo e o fim da cultura na escola deixou de ler, “Nem serāo nem fim de semana tranquilo, sem um único momento para lerem e reflectirem, e a leitura é a chave da reflexão. (A reflexão só lhes revelaria, aliás, serem eles e os seus actos, em grande medida, os responsáveis pelos desastres…)

Não inventam, portanto, nada”. As eleições sucedem-se, mas nāo há projectos políticos transformadores.

Que fazer com as disfunções crescentes do nosso modelo político?

* Do mesmo modo que se conjugaram e foram sendo resolvidas, na História e também com muitos conflitos e sofrimento, muitas das contradições da Igreja cristã. Apesar do Cristianismo ter na sua origem a separação luminosa entre o que é de Deus e o que é de César, a palavra fundadora de Cristo de que o seu reino não é deste mundo. Como diz o Padre Anselmo Borges no seu último livro: «a Igreja e a Cúria Romana fizeram mais ateus que Marx, Nietzsche e Freud”.