Facto 1: a Constituição da República Portuguesa determina que as deslocações do Presidente da República (PR) carecem de autorização prévia da Assembleia da República, conforme estipulado no artigo 129.º – “o Presidente da República não pode ausentar-se do território nacional sem o assentimento da Assembleia da República ou da sua Comissão Permanente, se aquela não estiver em funcionamento”. De acordo com o mesmo artigo, o incumprimento pode justificar perda de mandato.
Facto 2: o PR deslocou-se a Barcelona, na semana passada, para participar numa homenagem às vítimas do atentado terrorista de dia 17. Fê-lo sem a obtenção prévia de uma autorização formal dos deputados – ou seja, violando o estipulado na Constituição da República.
Facto 3: tendo o PR contactado o presidente da Assembleia da República (AR) acerca desta viagem atempadamente, mas com o parlamento de férias, a solução passou por um “mecanismo informal de decisão” (Ferro Rodrigues terá contactado todos os líderes parlamentares, que aceitaram) seguida do compromisso de, posteriormente, se regularizar a situação na próxima reunião da Comissão Permanente – leia-se, formalizar a autorização à posteriori, no dia 7 de Setembro. De acordo com o gabinete do presidente da AR, citado pelo Expresso, “para momentos excepcionais, procedimentos excepcionais”.
A sequência dos factos diz-nos então o seguinte: por uma questão de conveniência, dois órgãos de soberania (o Presidente da República e a Assembleia da República) suspenderam a Constituição, impondo um regime de excepção em virtude do que consideraram um momento excepcional. E ninguém se importou. Ora, em tempos que tanto se discute a falência das democracias europeias, eis uma prática inquietante mesmo debaixo dos nossos narizes.
Sim, a questão da viagem a Espanha não é em si problemática – a ida de Marcelo a Barcelona justifica-se, mesmo que o Estado português já estivesse representado através do primeiro-ministro. E sim, talvez a obrigação de um PR solicitar autorização ao parlamento para viajar seja actualmente pouco pertinente. Mas conceber que isso legitime que se incumpra a Constituição é exibir desconhecimento sobre o valor das regras formais numa república democrática. Ache-se o que se achar dessa obrigação formal, ela existe e está no papel. Até que uma revisão constitucional a de lá retire, a regra é para cumprir – mais ainda por quem jurou “cumprir e fazer cumprir” a Constituição. Que todos os partidos, juntos com PR e presidente da AR, concordem em desobedecer-lhe não atenua a transgressão. Pelo contrário, acrescenta-lhe gravidade: ficámos a saber que todos convivem bem com o acto de contornar a Constituição quando assim for benéfico e, pelos seus próprios critérios, houver um “momento excepcional”.
Os regimes republicanos e democráticos sustentam-se nas regras e nos procedimentos. Ou, dito de modo simples, na previsibilidade imposta por um enquadramento comum e que todos devem respeitar – no pressuposto de que ninguém está acima da lei. Mas, pelos vistos, há quem esteja. Permitir que as leis e regras sejam interpretadas conforme as conveniências, ou mesmo suspensas arbitrariamente para satisfação de necessidades tidas como “excepcionais”, é quebrar essa previsibilidade. É deteriorar a confiança dos cidadãos nas instituições políticas e no enquadramento comum em que assenta a república. É expor que as regras se aplicam a uns, mas poderão não se aplicar a outros. E é entregar o regime a quem, pelos seus critérios, define o que é “excepcional” e nos informa de quando as leis são ou não são para cumprir.
Sei que, para muitos, todo o episódio não passou de um problemazito sem importância. Mas é nestas pequenas coisas que, ao contrário do pressuposto democrático de que o povo é soberano, se vê que soberanos a sério são aqueles que determinam estas “excepções” à sua medida. Afinal, são eles que querem, podem e mandam.