Em Portugal, adoramos discutir ficções com a convicção de quem acredita realmente nelas. A ficção do momento é que a Constituição da República Portuguesa (CRP) é mesmo para ser cumprida, artigo a artigo, letra a letra. No caso concreto, a questão colocou-se à conta da vontade de Marcelo Rebelo de Sousa se deslocar ao Qatar para assistir a um jogo de futebol: está em causa o 129.º artigo da CRP, que determina que “o Presidente da República não pode ausentar-se do território nacional sem o assentimento da Assembleia da República”, sob risco de “perda do cargo”. É mesmo assim?

Nem por isso. Por um lado, a bolha política e mediática entusiasmou-se com várias considerações, fosse de activistas sobre direitos humanos no Qatar ou de deputados que votaram desalinhados dos seus grupos parlamentares. E, por fim, ainda se ouviram professores catedráticos acerca do sentido desta norma constitucional — será um proforma datado para se votar sim de olhos vendados ou será efectivamente para a Assembleia da República apreciar as deslocações do Presidente da República? Por outro lado, com tantas interpretações à discussão, ninguém se lembrou de discutir o que não tem interpretação possível: se o Presidente da República se deslocar sem autorização do parlamento, a consequência prevista é a “perda do cargo”. Ora, isso já aconteceu — mais do que uma vez — e sem qualquer consequência.

No dia 7 de Setembro, o parlamento votou favoravelmente duas deslocações do Presidente da República. Uma à Califórnia, a realizar entre 23 e 29 de Setembro. Outra a Angola, já realizada em Agosto (dias 26 a 29), para que Marcelo estivesse presente no funeral de José Eduardo dos Santos. Primeira constatação óbvia: Marcelo viajou a Angola sem autorização do parlamento, incumprindo a norma constitucional. Segunda constatação óbvia: ninguém se importou minimamente, a começar pelos próprios deputados, que aceitaram votar uma autorização para uma deslocação já efectuada. Na prática, uma votação inútil: se a deslocação tinha ocorrido, a votação não a poderia impedir, pelo que os deputados aceitaram participar num teatro constitucional e parlamentar.

Resultado: não somente o Presidente da República decidiu viajar sem autorização, não somente se manteve em funções (em desrespeito da CRP), não somente ninguém se atreveu a invocar o artigo 129.º para a “perda de cargo”, como a Assembleia da República ainda alinhou numa votação à posteriori para fazer de conta que as regras foram cumpridas. Se isto não é estar acima da Constituição, o que será?

Dir-me-ão: fecham-se os olhos porque a norma está datada, ultrapassada e desajustada da realidade. Talvez esteja. Mas o ponto não é esse: eu também acho que a legislação portuguesa está repleta de absurdidades, mas nem por isso fico isento de as cumprir. A lei é a lei, e, neste caso, a Constituição é a Constituição — as normas podem ser alteradas e revistas, mas enquanto estão em vigor são para cumprir. Foi, aliás, o que fez o então Presidente da República Jorge Sampaio, num episódio em que abdicou de uma deslocação à Jordânia por não ter obtido autorização atempada do parlamento — coincidência: também foi para um funeral de chefe de Estado. Mas não foi assim que fez Mário Soares, que terá viajado várias vezes antes de obter autorização da Assembleia da República e sempre sem qualquer consequência.

Enfim, como ninguém se importa, revelou-se certeiro o conselho de Marcelo Rebelo de Sousa quando, em flash interview no Estádio Alvalade XXI, nos diz “esqueçamos isto”. No nosso caso, não o Qatar, mas Portugal: esqueçamos que as elites do regime navegam acima das normas constitucionais e esqueçamos a fragilidade das nossas instituições democráticas. A bola vai começar a rolar. E se a democracia portuguesa não encanta, quando a bola rola Portugal dá show.

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