Havia uma piada a circular nas redes sociais, no início da pandemia, sobre as medidas de contenção da Covid-19 em diferentes países e a sua correspondente eficácia. O mais eficaz dos países era a Coreia do Norte: os números de infecções oscilavam sempre entre 1 e 0, porque cada caso positivo, em vez de merecer internamento hospitalar, era resolvido à lei da bala. Um humor sombrio, sem dúvida, que abrigava uma pontinha de verdade: em regimes ditatoriais, como a Coreia do Norte, onde o respeito por valores liberais e até pela própria vida humana é descartável, é muito mais fácil encontrar soluções eficazes para desafios desta natureza — seja reprimindo direitos e liberdades sem hesitação, seja tirando a vida a quem se converta em obstáculo.

A anedota, se assim se lhe pode chamar, expunha um dilema óbvio, que perdura após mais de um ano de pandemia: perante um vírus que se propaga à boleia da livre circulação de pessoas, as democracias liberais enfrentaram uma ameaça muito mais acutilante ao seu modo de vida do que qualquer regime iliberal. Tal como, no momento de identificar as soluções, as democracias liberais estiveram por definição limitadas a medidas por vezes lentas e menos eficazes do que as intervenções draconianas implementadas noutros cantos do mundo — como, por exemplo, na China, que selou prédios para prender pessoas nas suas casas ou que usa avançados mecanismos de vigilância e rastreamento que violam a privacidade dos seus cidadãos.

Esse dilema teve de ser assumido desde o início: há que proteger a nossa saúde, sim, mas sem para isso abdicarmos dos nossos valores, dos nossos direitos, das liberdades que conquistámos, do estilo de vida que escolhemos. Essa é, por definição, a linha vermelha de qualquer democracia liberal: agir em conformidade com os limites constitucionais e os princípios que norteiam as sociedades livres. Ora, apesar das tensões naturais que um contexto de crise impõe, e concorde-se ou não com as medidas implementadas, podemos dizer que assim aconteceu em Portugal, nomeadamente através dos estados de emergência, que enquadraram a suspensão temporária de direitos constitucionais, como o da livre circulação de pessoas.

Contudo, nas últimas semanas, isso deixou de ser assim. Acabou no momento em que se instituíram cercas sanitárias à Área Metropolitana de Lisboa sem estado de emergência, em clara violação da nossa Constituição. Acabou no momento em que a nossa liberdade de circulação passou a depender de um certificado digital, que de resto não está a acessível a todos em iguais condições (ou porque nem todos tiveram acesso à opção de se vacinar, ou porque nem todos podem aceder a testes gratuitos ilimitados). Acabou quando o acesso a áreas comerciais ficou restrito em função das opções privadas da saúde de cada um: recorde-se que a vacina não é obrigatória. Acabou, portanto, no momento em que se passou a linha vermelha e se aceitou que uma sociedade livre como a nossa adoptasse práticas segregacionistas, dividindo os vacinados e os não-vacinados como cidadãos de primeira ou de segunda.

Já o escrevi antes: confio na mais-valia da vacinação (que os estudos científicos suportam) e desconfio que na DGS anda tudo de cabeça perdida. Mas uma coisa é a incoerência das decisões políticas e sanitárias, por exemplo, sobre a necessidade de isolamento profiláctico para vacinados. Outra coisa é o Estado atropelar assim, explicitamente, os valores em que acreditamos e que nos definem, introduzindo segregacionismo e direitos exclusivos de acesso a espaços comerciais a portadores de certificados emitidos pelas autoridades públicas. Podem chamar-lhe outra coisa, mas é de segregação que estamos a falar. Esta diferenciação é arrepiante. É um precedente perigosíssimo, que sacrifica a coesão social numa sociedade livre. E é impossível ficar-se calado perante este retrocesso democrático.

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