O Presidente da República promulgou o diploma sobre professores e emitiu uma nota informativa. Proponho aos historiadores que guardem preciosamente essa nota presidencial. Num futuro pouco distante, quando estudarem os sinais e as causas da decadência nacional, estes oito parágrafos servirão de exemplo perfeito da falência institucional e política que se atingiu.

Deveria surpreender o país que o Presidente da República assuma por escrito, de forma tão desinibida, que procurou condicionar directamente a governação e as opções de política pública do Ministério da Educação. Na sua nota presidencial, Marcelo Rebelo de Sousa informou os portugueses de que submeteu duas (!) propostas de diploma sobre os concursos de professores à consideração do governo e lamentou que o governo rejeitasse ambas, até porque qualificou de “minimalista” a sua segunda versão. Aliás, mais do que lamentar, Marcelo explicitou o seu desagrado. Em termos de equilíbrios institucionais e separação de poderes, este comportamento do Presidente da República é incompreensível. Recorde-se: o Presidente não decide políticas públicas nem legisla. Neste campo, os seus poderes são de veto, para bloquear iniciativas legislativas, e, mais informalmente, de usar a sua magistratura de influência para sensibilizar os agentes políticos (governo e legisladores) — apontando problemas ou sugerindo soluções, mas não se imiscuindo no desenho das políticas públicas.

Ao imiscuir-se neste dossier da contratação dos professores, Marcelo Rebelo de Sousa ultrapassou largamente a linha da separação de poderes. Lamentavelmente, a reacção dos partidos não foi de censura institucional, em nome da preservação do bom funcionamento das instituições democráticas — pelos vistos, todos acharam normal. Mas, se for para acolher com normalidade, então que se exijam os mínimos para um diálogo político leal: para fins de transparência e escrutínio democrático, seria da maior relevância conhecer o texto das duas propostas que a Presidência submeteu ao governo. Afinal, se o Presidente da República se comporta como um decisor de política pública, parece-me lógico e legítimo que seja escrutinado publicamente enquanto tal, como sucede com governo e parlamento.

Esse escrutínio acresce em importância porque está em causa um diploma que terá efeitos nocivos para o sistema educativo. Até 2030, os desafios maiores da contratação docente são a escassez de professores, a falta de atractividade da carreira docente nos mais jovens e a ausência de flexibilidade para as escolas contratarem novos professores. Ora, este diploma não resolveu nenhum desses desafios e até agravou a raiz do problema: ficou contemplada “a graduação profissional como critério único para o recrutamento e colocação”. O Ministro da Educação assumiu esta semana, em audição parlamentar, que essa inclusão resultou da negociação com os sindicatos e lamentou o desfecho — como quem confessa uma derrota. Tal como admitiu que a obrigatoriedade de os professores concorrerem a todo o país no próximo ano lectivo foi uma “decisão difícil”, mas necessária (para fins de flexibilidade e equidade). Dúvida: as alterações que Marcelo Rebelo de Sousa tentou introduzir no diploma iam em que sentido? Do que se sabe pelos jornais, as alterações tentadas pela Presidência da República procuravam satisfazer as (poucas) reivindicações sindicais que o governo não conseguiu enquadrar, quebrando a pouca flexibilidade existente, o que arriscaria tornar péssimo um diploma já de si mau.

É triste o retrato do regime que se traçou à volta deste episódio, que produziu uma nota presidencial e um novo diploma sobre o recrutamento de professores. Temos um Presidente da República que ultrapassa os seus poderes e procura activamente condicionar as políticas públicas do governo. Temos um governo que reconhece a sua fraqueza nas derrotas negociais com os sindicatos de professores, capitulando em qualquer tentativa reformista de dar mais autonomia às escolas. Temos partidos políticos que não se interrogam acerca do condicionamento presidencial, porque o clima de guerra institucional entre Marcelo e Costa permite tudo menos arrancar olhos. E, por fim, temos as famílias que dependem da rede pública de educação e que vêem continuamente a resolução dos desafios do sector ser adiada — até ao dia em que o colapso da rede pública imponha à força as reformas que ninguém quis fazer. Ninguém ganha, todos perdem. Este é um regime de derrotados.

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