As redes sociais não dormem. Se não sabia, fica a saber: não deve comer numa Padaria Portuguesa onde, imagine, os donos se comportam como “patrões” e gerem o negócio para obtenção de lucro. Tal como não deve frequentar qualquer restaurante do chef José Avillez, que participou num festival gastronómico em Israel. Já agora, falando de Israel, também não convém nada gostar de artistas que lá dêem concertos, ignorando os apelos de boicote. Tenha cuidado com a sua imagem – não vista Ralph Lauren, que a marca aceitou pôr roupa sobre o corpo de Melania Trump. E escolha bem o seu barbeiro, não vá correr o risco de entrar num que seja exclusivo para homens e, por azar, também proíba entrada de cães. De resto, falando em cães, tenha as suas prioridades no sítio: entre um bebé e um cão, jogue pelo seguro e escolha o cão, que os pitbulls também são gente e isso é importante de reconhecer. Não é brincadeira. Mas, a propósito do humor, pondere bem com quem goza – uma tirada fora do sítio e acabou a sua vida social. Evite piadas sobre cães, gatos, periquitos, que os donos não apreciam. E não se atreva a falar sobre o Alentejo ou a caricaturar as minhotas, que com as identidades regionais não se brinca. Ah, sobretudo, perceba que a homossexualidade é um terreno proibido para o humor (não utilize expressões como “mariconço“) e que meter etnias à mistura merecerá todas as qualificações de racismo. Enfim, a lista de indicações é longa e todos os dias se actualiza.

Tudo isto é ridículo? Sim, tudo isto é ridículo. Mas está-se tão habituado a polémicas oriundas das redes sociais que se perde a noção do ridículo. E, pior, perde-se a visão sobre os efeitos destas polémicas. Primeiro, o de curto prazo: a deterioração do debate público. Não é só a preferência por controvérsias absurdas e artificiais, alimentadas por uma total permeabilidade à manipulação dos factos e à disseminação impune de mentiras. É também o perigoso reconhecer das redes sociais como fonte legítima para posições e opiniões válidas sobre o que quer que seja. Afinal, as redes sociais são apenas uma ferramenta, quem tem opiniões são as pessoas. E não, o que aparece nas redes sociais não pode ser visto como representativo das vontades populares – nem todos as usam e nem todos os que as usam o fazem da mesma forma ou com os mesmos interesses. Um debate guiado pelas redes sociais é, portanto, um debate estéril. E os jornais, ao noticiarem sucessivamente o que se passa nas caixas de comentário do facebook, contribuem para essa troca de papéis.

Segundo, o efeito de longo prazo é ainda mais gravoso: a promoção de uma fragmentação social. Por todo o mundo, é-se diariamente invadido por esta pequenez persecutória das redes sociais, onde prevalece a intolerância para com todos aqueles que pensam diferente, gostam diferente ou fazem diferente. Uma intolerância que existe em bolhas cibernéticas e opera em bandos de likes e cliques, gerando maiorias ruidosas suportadas por minorias sem rosto. Uma intolerância que, pela intimidação, visa impor a sua visão do mundo esmagando a dos outros. Perceba-se o ponto. A questão não está na discordância – desejável numa sociedade democrática e pluralista – mas na incapacidade de aceitar a validade da opinião dos outros ou de reconhecer os factos que devem sustentar o diálogo. Pode não parecer óbvio, mas esta fragmentação social ameaça a estabilidade das nossas democracias. Como bem apontou Barack Obama no seu último discurso oficial enquanto presidente dos EUA: uma soma de bolhas não faz uma sociedade e impede a construção de pontes em prol de objectivos comuns. Este será um dos grandes desafios dos tempos vindouros.

Acha que não? Então olhe para o presidente americano. Trump é um produto das redes sociais: alimenta-se do confronto e da fragmentação social, promove reacções por impulso, reflecte o mundo através de tweets de 160 caracteres, desrespeita as normas sociais, inviabiliza o diálogo porque desvaloriza os factos face às conveniências. A sua ordem executiva, para restringir a entrada nos EUA de imigrantes oriundos de países de maioria muçulmana, resume-o. Não está em causa o impacto na segurança nacional – como seria fácil combater o terrorismo se bastasse impedir a entrada no país de quem vem de sítio A e sítio B. Está em causa a intensificação de um determinado ambiente social – mais crispação, mais medo, mais fragmentação. Teremos quatro anos disto, pelo que teremos também de saber viver com as incertezas. Mas há, claro, uma certeza: a de que resistir à javardice, nas redes sociais e na política, ascendeu a forma de resistência democrática.

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