Podia ser coincidência, não deve ser coincidência. No mesmo dia as nossas duas revistas de informação, a Visão e a Sábado, tocavam na corda sensível dos “negócios” que, de uma forma ou outra, parecem borboletar sem descanso em torno do ex-primeiro-ministro José Sócrates.

Na Visão lemos a entrevista a António José Seguro onde ele, sem citar nomes, diz que “há, em Portugal, um partido invisível, que tem secções sobretudo nos partidos de Governo, que capturou partes do Estado, que tem um aparelho legislativo paralelo através dos grandes escritórios de advogados e influencia ou comanda os destinos do País”. Depois acrescenta que “o que existe no PS mais associado a essas coisas é apoiante de Costa”.

Já a Sábado enche a capa com um novo caso que envolveria o “animal feroz”, um caso que estaria a ser investigado na sequência de uma certidão extraída do processo Monte Branco. Desta vez em causa estaria o apartamento em que residiu quando esteve em Paris e operações imobiliárias realizadas por um seu primo e por um empresário seu amigo. O apartamento de Paris valeria três milhões de euros e, no quadro de um processo judicial que envolve o Correio da Manhã, o ex-primeiro-ministro tem-se recusado revelar o contrato de arrendamento.

Esta investigação da Sábado permitiu-nos reviver um momento retintamente socrático. Primeiro, menos de uma hora depois de conhecida a capa da Sábado, já a Procuradoria Geral da República estava a emitir um desmentido – não me recordo de alguma vez ter sido tão rápida a desmentir uma notícia cujos detalhes nem sequer eram conhecidos. Depois, assistimos a uma prestação tipicamente socratina na RTP1, onde teve direito a vitimizar-se no Telejornal, um programa onde ficámos sem saber se foi a convite da estação ou a pedido (Sócrates disse, e cito: “decidi vir aqui esta noite…”). Por fim, vimos a Sábado emitir um desmentido onde explicava que a nota da PGR afinal não desmentia nada: nela negava-se a existência uma investigação no quadro do processo Monte Branco, a revista falava de uma investigação num processo paralelo.

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Tudo isto sucede na mesma semana que começou com um comentário muito curioso do mesmo José Sócrates na RTP: “Não vi até hoje nenhuma explicação que me convencesse que era necessário deter Ricardo Salgado”. Um Ricardo Salgado a quem, recorde-se, Sócrates pedira, via o primo José Maria Ricciardi, que não se esquecesse do “amigo” que estava em Paris, conforme soubemos por via das escutas a Ricciardi no âmbito do processo Monte Branco.

Este regresso alvoraçado de José Sócrates ao primeiro plano das notícias trouxe-nos também de volta o mundo das suas “narrativas”. A sua actual narrativa é que é um homem modesto, que nunca teve contas bancárias a não ser na Caixa-Geral de Depósitos e, por isso, nunca se poderia envolver num processo como o Monte Branco, um esquema de transferências de milhões.

E, de facto, consultando as declarações de rendimentos que depositou no Tribunal Constitucional desde 1987, nunca se conheceram a José Sócrates quaisquer poupanças – pelo menos ele nunca as declarou. Estaríamos pois perante uma situação de chapa-ganha-chapa-gasta que, porém, não o impediu de adquirir um apartamento de luxo em Lisboa em 1996 (Vale e Azevedo era vizinho), por um valor declarado (para efeitos de siza) de 235 mil euros. A mãe compraria um outro apartamento no mesmo prédio, apartamento que depois venderia a um empresário amigo de José Sócrates, o mesmo que estará agora a ser investigado por causa do apartamento de Paris. Paris onde, recorde-se, José Sócrates só conseguiu viver porque pediu um empréstimo à Caixa-Geral de Depósitos.

A queda de um homem tão poderoso como Ricardo Salgado naturalmente que faz aumentar a expectativa sobre os próximos passos da Justiça, e a nossa curiosidade só pode aumentar quando vimos Eurico Brilhante Dias, habitual porta-voz de António José Seguro, a desabafar assim no seu facebook: “Quem sabe sabe e o Ricardo sabe. E se ele conta o que sabe? E o que saberá?”

Durante muito tempo, demasiado tempo, sempre que surgia um novo caso envolvendo José Sócrates – e eles foram tantos, mas tantos mesmo –, grande parte do país levantava-se contra os “assaltos de carácter”, os socialistas uniam-se e cerravam fileiras, e procurava-se intimidar as vozes discordantes até se conseguir que o silêncio caísse sobre tudo o que pudesse perturbar a glória do líder. E garanto-vos que sei do que falo quando me refiro a tentativas de intimidação. Julgava que esse tempo tinha passado de vez até assistir à sequência notícia da Sábado-comunicado da PGR-intervenção na RTP. Mas mesmo assim a principal razão porque sinto que esse tempo não voltou é porque estes acontecimentos também deixaram mais claro até que ponto o “animal feroz” se tornou num activo tóxico para o próprio Partido Socialista e para os que, nele, lutam pela liderança.

Defendo há muito tempo, e fi-lo muitas vezes quase completamente sozinho, que os métodos de Sócrates, o estilo de Sócrates, o autoritarismo de Sócrates, a obsessão pelo poder de Sócrates, eram imensamente nefastos para o debate democrático, para o funcionamento das instituições, para o país e para a sua economia. Hoje sabemos que o pináculo do poder de Sócrates coincidiu com o pináculo do poder de Ricardo Salgado, e isso não aconteceu por acaso: creio sinceramente que acreditaram que podiam tomar conta do país numa espécie de duopólio que beneficiava ambos.

O balanço dessa era só muito parcialmente está feito, há muito ainda que não sabemos, circulam ainda muitas “narrativas” que mascaram a realidade, mas estamos também num tempo de revelações. Um tempo por isso muito interessante.