Fundamentalismo islâmico e terrorismo. Xenofobia e ascensão de nacionalismos. Perseguição social e intolerância nas redes sociais. Discriminação sexual e confronto de visões morais da sociedade. No fundamental, o debate político foi absorvido pela dimensão identitária (social, nacional, sexual, religiosa) – designada de “identity politics”. E, como tal, ficou reduzido à oposição entre grupos representantes dessas identidades – sejam os supremacistas brancos, os negros, os gays e minorias sexuais, os radicais islâmicos. É uns contra os outros, não só nas ruas, mas também nos debates cada vez mais crispados e menos respeitadores da diferença. E, mais do que uma inversão dos pressupostos liberais (leia-se, dos princípios que estão na base das democracias modernas), este rumo representa um beco sem saída.

As democracias liberais e pluralistas foram erigidas sobre valores humanistas e universais (liberdade, justiça, igualdade, tolerância) precisamente para que as diferenças físicas, sociais e religiosas dos cidadãos se diluíssem perante a lei. Para que, independentemente das origens e ideologias de cada um, todos coubessem numa comunidade formada da partilha de valores acima dessas identidades específicas. Hoje, esse princípio fundador está contaminado. O que cada grupo identitário exige da sociedade não é o mero reconhecimento do seu espaço numa comunidade plural (o que seria justo), mas a absorção dos seus ideais por todos os outros (o que é injusto). Como sublinha Mark Lilla nesta imperdível entrevista, os ‘identitários’ pretendem que o país pense como eles e que de cada situação retire as mesmas sentenças morais que eles. A posição não é apenas ilegítima, é também a receita para um confronto permanente e perpétuo no seio das comunidades.

É comum (e verdadeiro) dizer-se que há neste estado de coisas uma grande responsabilidade da direita populista que, tendo sempre existido, chega agora a cada vez mais gente. Repare-se nos EUA, como em Charlottesville, mas também na Europa de Viktor Orbán (Hungria) e Le Pen (França) ou ainda nos recentes atropelos institucionais na Polónia. A crise económica e a dos refugiados catapultaram o ódio racial e a intolerância nacionalista (sob formas mais ou menos assumidas) para a agenda de muitos partidos de direita ocidentais, através de movimentos identitários que assumiram a perseguição ao “outro” – seja este o refugiado, o negro ou o estrangeiro. E porque são inimigos das democracias liberais, a ascensão desses movimentos fragiliza os nossos regimes e as nossas comunidades.

Mas reduzir o problema à direita populista, como tão geralmente se faz, é esquecer as responsabilidades da esquerda contemporânea nesta decadência democrática. Nos últimos anos, ferida e órfã de discurso político durante a crise das dívidas soberanas (lembre-se o que aconteceu aos partidos socialistas de vários países europeus, da Grécia a França), a esquerda preencheu o vazio de conteúdo ideológico pela apropriação de políticas de identidade – pela agenda dos LGBT e minorias sexuais, pela contestação do “black lives matter”, pelo activismo anti-UE, pelo multiculturalismo que relativiza crimes de minorias étnicas e religiosas. Compreenda-se que o ponto crítico não está no reconhecimento de direitos ou no valor de várias destas causas – obviamente, tem mérito quem aponta e enfrenta discriminações sociais ilegítimas, como tão evidentes são as raciais. O ponto está na apropriação feita por estes grupos (e, depois, pelos partidos da esquerda populista) no debate político, impondo um combate social e exibindo intolerância e desprezo moral por todos aqueles que não vêem o mundo pela mesma lente.

Dizer que há erros e responsabilidades dos dois lados não atenua ou relativiza as acções de nenhum dos campos. Isto não é um jogo de equivalências – e olhando, por exemplo, ao caso recente de Charlottesville, o repúdio pela violência dos supremacistas brancos deve ser espontâneo e inequívoco. Mas quem não perceber que a fragmentação social de grupos contra grupos (e todos contra todos) que tanto nos impressiona está a ser alimentada pela direita e pela esquerda, através das intolerantes políticas de identidade, não entenderá a dimensão do problema com que as nossas democracias têm e terão de lidar. E, logicamente, para ele não encontrará solução.

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