Os últimos meses têm sido marcados por um conjunto de acontecimentos e sintomas que nos deviam preocupar a todos, como sociedade. O facto de a economia estar a crescer e de o emprego subir não nos deve fazer esquecer que o desenvolvimento não se faz apenas pela prosperidade.

Um país desenvolvido tem de ter instituições fortes, credíveis e independentes. Tem de ser capaz de responsabilizar quem não cumpre os seus deveres profissionais. Tem de ter um Governo que defende a transparência e a liberdade de informação. Tem de conseguir viver com a diferença de opiniões e convicções por mais disparatadas que possam ser. Tem de ter elites e lideranças que sabem fazer a diferença entre racismo e criticas a quem não cumpre a lei e assim é deixado. Não é apenas em Portugal que vemos tudo isto, uma espécie de trumpismo ao contrário.

É possível identificar seis grandes acontecimentos que marcaram recentemente a nossa vida pública e que recomendam um apelo à reflexão.

A descredibilização das instituições é o primeiro a ser citado por se ter iniciado mais cedo. Começou com o ataque ao Banco de Portugal e ao Conselho de Finanças Públicas, as duas únicas instituições que, concordando ou discordando delas, tinham peso no espaço público e naquilo que diziam.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O Banco de Portugal já vinha bastante abalado do anterior Governo pela intervenção no BES, com grupos, por vezes com interesses opostos, unidos por criticas à sua actuação. Ou porque actuou tarde de mais, ou porque não se devia ter actuado, ou por tendo-se actuado dever-se-ia ter-se protegido e envolvido o Governo nessa actuação – como aliás aconteceu na nacionalização do BPN, apresentada pelo então governador Vítor Constâncio e pelo ex-ministro Fernando Teixeira dos Santos. Mas os ataques de que foi alvo pelo Governo de António Costa foram bastante mais violentos, só se acalmando quando o governador Carlos Costa cedeu – acabou por não nomear exactamente quem queria para a administração – e quase desapareceu do espaço público.

Repare-se que não se está aqui a dizer que o Banco de Portugal fez tudo bem. Mas há um ponto em que se tem de reconhecer que o Banco de Portugal teve coragem a par com o ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho (ou até apoiado por ele): enfrentou Ricardo Salgado. Como o ex-presidente do BES disse na entrevista que deu ao Dinheiro Vivo, com qualquer outro Governo o GES teria sido salvo. Com dinheiro dos contribuintes, pressupõe-se. Vai-se gastar mais dinheiro? Ninguém sabe. A diferença está na hierarquia de valores: salvar o GES era salvar a família Espírito Santos, salvar o BES é salvar as poupanças das famílias. Há momentos na vida de uma sociedade, como na vida de cada um, em que devemos preferir pagar para manter os nossos valores.

O Conselho de Finanças Públicas foi a vítima seguinte. Teodora Cardoso queria que um dos lugares do conselho fosse ocupado por Teresa Ter-Minassian, responsável do FMI pelos primeiro e segundo plano de estabilização e conhecedora da economia portuguesa. Uma personalidade destas daria sem dúvida ao Conselho credibilidade e independência. Mas António Costa não quis. Para o seu lugar foi Paul de Grauwe, professor na London School of Economics. Não está em causa o seu curriculum, mas De Grauwe não conhece a economia portuguesa como Ter-Minassian. E assim se perdeu a oportunidade de dar mais força a uma instituição fundamental, num país que tem caído nos braços do FMI por erros na política orçamental, por indisciplina financeira. O que isto revela é não só o desinteresse – para dizer o mínimo – em dar ao país instituições fortes, como também a total ausência de vontade para corrigir os erros que estamos a cometer há décadas.

A indiferença pela força das instituições verifica-se ainda nas nomeações para a Anacom com o Governo a ver aprovado pelo Parlamento apenas quem propôs para Presidente, João Cadete de Matos – cuja nomeação para a administração do Banco de Portugal ficou pelo caminho. Vamos ver o que acontece na nova votação na Assembleia.

Os acontecimentos associados à tragédia de Pedrogão Grande são também um exemplo de falta de transparência, de responsabilidade e de preocupação com a imagem e comunicação. Só se pode compreender tudo o que se tem passado – como a teimosia em não identificar as vítimas – admitindo a hipótese de o Governo querer descolar a sua imagem daquilo que aconteceu. Hipótese que é reforçada pelo facto de termos sabido que o Governo (ou o PS) encomendou um “focus group” para saber se a sua populidade tinha sido afectada pelo incêndio. Dizer que quem fala do assunto está a aproveitar-se da tragédia é também, em si, um bom exemplo de uma estratégia desresponsabilização. E atenção, não se está a dizer que o Governo é o responsável, porque não é. Mas pede-se transparência e responsabilização, além de acção.

A acção a que assistimos foi a aprovação de legislação que condiciona a plantação de eucaliptos que, se analisada nos seus efeitos, terá mais impacto na população envelhecida do que nos supostos alvos – a indústria da pasta de papel – ou na prevenção de incêndios.

Ainda sobre os incêndios, que este Verão parecem não abandonar o País, a outra acção a que assistimos foi à designada “lei da rolha”. O Governo – sim, por que a Protecção Civil não o faria sem a aprovação do Governo – impede agora os bombeiros de falarem para o país. Sim para o país, porque um dos papéis dos jornalistas é fazer chegar a informação à população em geral. Mais uma vez o Governo faz da comunicação uma das suas preocupações, como se tudo fosse resolvido e controlado com imagem e comunicação.

No terceiro caso, o roubo em Tancos, vemos também o controlo de comunicação como a principal reacção. Depois de o Chefe do Estado-Maior do Exército ter demitido cinco comandantes em Tancos, depois de o Presidente da República ter ido a Tancos, depois de conhecermos a lista do material roubado através de um jornal espanhol, o primeiro-ministro junta os chefes militares e o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas à frente das câmaras de televisão para desdramatizar a situação. Fica na memória o valor do material roubado: pouco mais de 30 mil euros. Foi no mínimo triste ver os militares a sujeitarem-se a uma tal situação e ter de admitir que até as Forças Armadas já se deixaram capturar e foram contaminadas pela desresponsabilização.

No universo da classe política assistimos ainda neste já doloroso Verão a mais uma facada na sua credibilidade, com o que se passou na comissão parlamentar de inquérito à capitalização da CGD. O PS, o PCP e o Bloco a inviabilizaram o acesso a informação que permitisse perceber quem decidiu e porquê os empréstimos mais ruinosos concedidos pela CGD, com tácticas jurídicas dignas dos advogados que vencem casos por via processual.

Defender que é por causa de o banco estar em funcionamento que não se podem apurar responsabilidades é dar à banca um estatuto que mais nenhuma instituição tem e limitar a responsabilização a casos em que já tenha falido. A mensagem subjacente é que os bancos podem fazer tudo, que nada será politicamente inquirido numa comissão parlamentar se não tiver colapsado.

As reacções à entrevista do candidato do agora só do PSD a Loures, André Ventura é o quinto caso deste Verão que nos devia fazer pensar (vale a pena ler a entrevista e não apenas o título). O que diz é do conhecimento de quem vive em pequenas comunidades com determinado tipo de pessoas que pertencem à etnia cigana (é importante dizer que não são “os ciganos” mas sim alguns, que entram mais na categoria de bandidos). Funcionários das autarquias e os habitantes de algumas localidades sabem que é difícil, se não impossível, fazer com que essas pessoas cumpram a lei. Assim como sabem que a polícia evita intervir. Só por hipocrisia ou ignorância é que se pode acusar alguém de racismo por ter identificado um problema que precisa de ser resolvido.

A entrevista do cirurgião António Gentil Martins é o quinto caso, que ilustra característica dos tempos actuais: a intolerância. Claro que o que disse não merece o consenso da comunidade científica nem a aprovação da maioria dos portugueses – assim o reflecte o facto de o casamento entre pessoas do mesmo sexo ter sido aprovado no Parlamento, por exemplo. Mas a democracia e a liberdade significam que Gentil Martins, como qualquer outra pessoa, tem o direito a dar a sua opinião, por errada e absurda que seja. E esse é um princípio que temos de defender, o da liberdade de opinião. Discordar sim, mas estar disposto a lutar pelo direito à opinião de dizer o que diz quem discorda de nós, usando livremente uma citação atribuída a Voltaire, como lutar pelo direito a ser diferente.

Finalmente, mas não menos importante, temos assistido nos últimos tempos a um crescendo de agressividade contra o jornalismo e os jornalistas. (Declaração de interesses: sou jornalista). Sim, os jornalistas cometem erros como todos os profissionais. O número de erros cometidos hoje é maior do que no passado? É provável. A velocidade imposta pela informação em tempo real, a concorrência e a crise financeira em que se encontram os media levam a admitir que se cometam mais erros. Mas é o jornalismo em geral menos rigoroso do que no passado? Em alguns temas que até estariam ausentes dos media no passado é provável – o recente caso do vídeo de Paco Bandeira é exemplo disso. Mas nas matérias importantes, o rigor da informação transmitida é até superior, quer pelas ferramentas que hoje se tem para cruzar fontes, quer pela possibilidade de disponibilizar nos sites algumas fontes dessa informação. Claro que esse poder de informar melhor – como por exemplo, o de saber quase de imediato que um site espanhol divulgou a lista das armas roubadas em Tancos – incomoda muito mais o poder.

Estamos a olhar para sintomas na nossa sociedade que nos deviam preocupar. Porque, para agora citar livremente uma frase atribuída a Bertolt Brecht, hoje o que se passa pode estar a ter efeitos negativos na outra tribo ou partido que não é o nosso. Ou pode estar a condicionar a opinião de pessoas de quem discordamos. Amanhã pode começar a acontecer com os nossos amigos. Um dia estará a acontecer connosco. E já pode ser tarde de mais.