O meu último artigo, sobre o liberalismo à portuguesa, suscitou tantas reacções negativas que seria indelicado deixar todas sem resposta. Vou recorrer a autores aqui do Observador e fazer deles representantes destas opiniões.
José Manuel Fernandes referiu que eu tratei a preto e branco alguns assuntos que têm tonalidades de cinzento. André Azevedo Alves fez uma crítica semelhante: “pela sua complexidade, há certamente liberais que defendem posições diferentes sobre muitos dos temas enunciados por Aguiar-Conraria no seu artigo, mas sugerir que algumas das questões morais mais desafiadoras têm respostas óbvias, directas e inequívocas dadas pela cartilha jacobina do radicalismo progressista não é apenas simplista e redutor do ponto de vista intelectual: é moralmente bizarro.”
É verdade que disse que um liberal é alguém que respeita as opções dos indivíduos. Mas não deixa de ser verdade que para cada assunto concreto há 1001 razões para não se escolher a opção mais liberal. O liberalismo não esgota toda a argumentação possível. Por exemplo, somos (quase) todos a favor da escolaridade mínima obrigatória, o que é uma posição que de liberal (pelo menos em sentido estrito) tem muito pouco. Ou seja, não está em causa, nem podia estar, que em qualquer assunto concreto um liberal esteja obrigado a uma só solução. Evidentemente que não. O que é peculiar, e foi isso que sublinhei, é que qualquer que seja o assunto (desde que envolva questões morais) a direita que se diz liberal encontra sempre alguma razão para não respeitar a liberdade de escolha. Dei muitos exemplos, mas com certeza que poderia dar outros, como a legalização da prostituição.
Já o contrário também se observa. A direita que se diz liberal passa a vida a combater os subsídio-dependentes. Subsidiar a cultura? Nem pensar. Subsídio de desemprego? O mínimo possível. Mas, quando imaginam um ataque à Igreja Católica, ai Jesus, que o Estado deve continuar a dar os subsídios. Seja com as IPSS, as Misericórdias ou com o ensino. E isso leva-nos ao debate sobre as escolas e os contratos de associação.
Comecemos pelo início. É uma contradição lógica defender-se a escolaridade mínima obrigatória e dizer que o Estado tem de respeitar as preferências dos pais. As duas posições são incompatíveis. Se somos a favor da escolaridade obrigatória é porque não confiamos totalmente nas decisões dos pais. Se confiássemos não seria necessário obrigá-los. Ou seja, esta regra, pouco liberal, existe porque a sociedade considera que a preferência dos pais nem sempre deve ser respeitada.
Diz José Manuel Fernandes que eu me engano ao sugerir que boa parte do sistema tem a ver com a Igreja. Na verdade, quem a trouxe à colação não fui eu. Foi André Azevedo Alves que citou João César das Neves, escrevendo que esta medida é “o maior ataque dos últimos anos contra a presença da Igreja Católica na sociedade”. Ainda relacionado, outro argumento que li amiúde foi o de que as escolas com contratos de associação estavam obrigadas ao ensino laico, pelo que a sua matriz católica era irrelevante. Por exemplo, Alexandre Homem Cristo (a quem peço desculpa por no artigo anterior ter dado a entender que alinhava com a maioria da direita nos vários assuntos que referi) argumentou na sua página de Facebook que o serviço público prestado não pode ter interferência dessa matriz católica. Voltamos ao mesmo: se isto fosse verdade, então, por definição, não haveria qualquer ataque à Igreja Católica.
De qualquer forma, os factos falam por si, basta ir ler os estatutos de alguns colégios com contratos de associação. Um caso engraçado é o do Colégio Rainha Santa Isabel (CRSI), em Coimbra, a menos de 2 kms de excelentes escolas públicas, como a Escola Secundária de Dona Maria ou a Avelar Brotero. Como “visão educativa” a CRSI tem “somente em vista a glória de Deus e a salvação do mundo” e quer que “todas as nossas acções tendam para este nobre fim”. No item da acção educativa diz que quer viver “em bom entendimento, formando um só coração e uma só alma, pertencendo totalmente a Deus.” Diz ainda que “como escola católica que é, todas as turmas do CRSI iniciam o seu dia fazendo oração comum ou comunitária, pensada e adaptada para cada faixa etária, iniciando o nosso dia com a bênção e o encontro com Jesus Cristo.” A 350 metros está o Colégio São Teotónio, também com contrato de associação, que na sua página diz que o “objetivo do Colégio de São Teotónio enquanto Escola Católica é educar a partir dos referenciais do humanismo cristão”. Nada contra. Mas com o dinheiro dos contribuintes dum Estado laico, não. Aliás, tenho a certeza absoluta de que se uma escola islâmica com estas características fosse financiada com os nossos impostos, grande parte da direita se atirava ao ar. E muito bem, eu também me atiraria.
Mas esqueçamos a religião e recentremos a discussão naquilo a que André Azevedo Alves chama um “ataque soviético contra os contratos de associação” e que José Manuel Fernandes chama “visão estatista, iliberal e jacobina do serviço público de Educação [que] entende que o Estado deve ser, à soviética, o proprietário de todas as escolas”. Comecemos por ter noção das proporções. Este míssil de um MiG soviético não é mais do que reverter uma alteração a uma lei feita por Nuno Crato há poucos anos. Estamos a falar de cerca de 80 escolas afectadas em quase 1000 (dados da Pordata). E, dessas 80, muitas sobreviverão sem os contratos de associação (os dois exemplos que dei no parágrafo anterior são de escolas que nasceram várias décadas antes da existência destes contratos; não vão desaparecer agora). Convenhamos, reverter uma medida de Nuno Crato, um péssimo ministro da Educação, não é um ataque soviético. Até o Memorando de Entendimento, assinado entre Portugal e a troika em 2011, previa a redução dos contratos de associação. Bem sei que troika é uma palavra de origem russa, mas falar em ataque soviético é um manifesto exagero.
José Manuel Fernandes queixa-se de que a minha posição de recusa de contratos de associação onde houver escola pública é iliberal. Devolvo a queixa. Peguemos novamente no exemplo de Coimbra. Há escolas privadas com contrato de associação, mas também há escolas privadas sem qualquer contrato. Quando o Estado subsidia as primeiras e nada entrega às segundas está a distorcer a concorrência. Está a favorecer umas escolas privadas prejudicando as outras escolas privadas. Defender isto, como JMF defende, de liberal não tem nada. É exactamente aquilo que a direita liberal tanto critica: que o Estado privilegie umas empresas privadas em detrimento de outras. É também um bom exemplo de como a distorção da concorrência causada pelo Estado gera corrupção. Basta lembrar as suspeitas de corrupção de 14 escolas com contratos de associação. 14 em 80 é quase 20%. E estamos a falar apenas do que é conhecido.
Parece-me que JMF considera que os contratos de associação são um substituto do cheque ensino. Mas não são. Com o cheque ensino, cada família escolhe o que quer e põe os filhos na escola que quer. São as famílias que são financiadas e, por isso, vêem a sua liberdade de escolha alargada. Independentemente de sermos a favor ou contra, a argumentação é lógica. No caso dos contratos de associação, algumas escolas são subsidiadas e outras não. É a cultura da subsidiodependência e dos amigalhaços, na qual o capitalismo clientelar português é fértil, que assim se estimula.
Diz JMF que eu defendo que o “serviço público de ensino deve tender a ser um sistema fechado, monopolizado por escolas do Estado, comandado a partir da 5 de Outubro e onde os professores são tratados como números arrumados em ‘listas ordenadas’ que determinam as escolas em que são colocados”. Uau! Ou se é a favor dos contratos de associação ou se defende a União Soviética! E queixou-se o JMF de que eu trato isto a preto e branco. Nada disso, defendo escolas públicas laicas altamente descentralizadas (e, por falar nisso, o facto de se ter proposto que 25% dos curricula sejam definidos localmente, não conta nada?), com capacidade de contratação do seu pessoal docente, com forte papel das câmaras e das comunidades locais, podendo tomar diversas formas, desde fundações a outras formas jurídicas que sejam adequadas.
PS: Relativamente ao fim dos contratos de associação redundantes, há um aspecto que gostaria de deixar claro. Concordo com o princípio, mas discordo da precipitação. Medidas destas anunciam-se com um ano de antecedência e não no terceiro período do ano lectivo.